Era tão bom, quando caminhávamos juntas no comecinho da noite, a lua e o céu estrelado como testemunhas. Ela me olhava, como quem agradece a companhia, e embora em silêncio, tanta coisa era dita!
Quando pequena, precisei encontrar uma maneira de domar seu caráter voluntarioso e conseguir chegar até ela, para que ela me aceitasse. Foram tempos muito conturbados! Cheguei a dizer que não gostava dela, e que não desejava a sua presença em minha vida. Mas ela me ensinou que o amor verdadeiro e a paciência sincera podem transformar-se em uma ponte entre dois corações, e logo, ficamos inseparáveis; daquele tipo de amigas que se compreendem sem nada dizer.
Excelente ouvinte, ela prestava atenção... sabia esperar quando eu precisava me ausentar, e não importava quanto tempo eu ficasse fora: era sempre recebida com sorrisos e carinhos, comemorações e alegria pela minha volta.
Minha amiga não falava muito com a boca, mas dizia tudo através de um simples olhar. Eu a amava, e ela me amava!
Tão bom, quando nos deitávamos no tapete da sala ouvindo música baixinho nas tardes de sexta-feira! Impossível sentir solidão, mesmo na casa silenciosa, enquanto no corredor, o relógio marcava a presença do tempo que nos afastaria... e eu já sabia. Nós adormecíamos assim, deitadas ao lado uma da outra, e quando eu despertava, dava com aquele par de olhos me olhando, me olhando... às vezes eu ficava intrigada com a maneira como ela me olhava com tanta insistência, como se visse em mim alguma espécie de líder a quem devesse seguir. Ela mal sabia que era ela quem sempre ditava as regras da nossa amizade!
Lembro-me da última vez que acordei com aquele par de olhos amorosos sobre mim: eu estava deitada na rede da varanda, dormindo ao sol, após uma noite em claro na qual eu e ela lutamos para que ela permanecesse viva. Eu escutava os ruídos da vida bem ao longe, exatamente como alguém semi adormecido; de repente, eu despertei num sobressalto, e foi aí que deparei com aqueles olhos de jabuticaba em mim pela última vez. Quando a vi, sentada na grama ali perto, sentei-me na rede e chamei-a para o meu lado. Ela veio, e estava feliz. Quem não soubesse de sua história, diria que ela estava perfeitamente saudável e tranquila.
Ela veio ficar ao meu lado, e enquanto eu a acariciava, ela adormeceu... para despertar aflita logo depois, tentando respirar. Ergueu-se, caminhando com certa dificuldade, e tentou comer alguma coisa; mas quando filetes de sangue desceram de suas narinas, ela desistiu, e não voltou a tentar novamente. Naquele instante, eu sabia que eu a estava perdendo.
E depois, foi a corrida angustiante contra o tempo, e a busca por uma resposta diferente que nos trouxesse um pouco de esperança. Ela olhava pela janela aberta do carro, e todo movimento lá fora chamava a sua atenção. Parecia estar despedindo-se das coisas. Olhava, olhava, olhava tudo, virando a cabeça para acompanhar o que passava diante dos seus olhos atentos pela janela do carro. Eu tentava tranquilizá-la, pois sabia que estava com muitas dificuldades para respirar. Não conseguia deitar-se no banco, pois isto significava o aumento de suas dificuldades respiratórias. E eu me perguntava o que faríamos para que ela (e nós) pudéssemos novamente voltarmos a ter uma noite de sono.
As palavras de esperança que buscávamos não chegaram. Antes, ouvimos outras palavras, que selavam o destino dela, e o final de uma amizade que durou mais de dez anos. Foi declarado que não havia mais jeito, e que dali para frente, as coisas haviam de piorar muito, e que o que aconteceria com ela seria doloroso tanto para ela quanto para nós. Ouvir aquelas palavras tirou-nos do eixo. Eu olhava para ela, que estava entretida com o movimento que passava pela porta de vidro, sem saber que estávamos decidindo seu destino. Quase não era possível escultar seus pulmões. Intoxicada pelos remédios, minha amiga estava muito inchada e dolorida.
Achei que tinha chorado todas as lágrimas que restavam enquanto me abraçava a ela, que evitava me olhar. Ela não olhou mais para mim, nem mesmo quando chamei seu nome; mantinha seus olhos fixados na porta de vidro.
Um mês se foi e ainda choro a falta dessa minha amiga. Acho que de vez em quando, ainda chorarei. Como hoje à tarde, quando adormeci na rede da varanda e despertei sem aqueles olhos cálidos me olhando.
A despedida é um longo processo, e acho que jamais nos despedimos completamente.
Nossas brincadeiras, quando ela se deitava de barriga para cima... não parece um jacaré? |
Amiga Ana, logo percebi ao ler aqui, que se tratava de sua amiga mesmo, pois é, também precisei, faz quase um ano, decidir sobre deixar o meu melhor amigo viver e sofrer ou deixar que o sacrificassem sem dores, mas para o bem dele, ainda sinto uma dor assim como a sua, pois era um lindo cão dálmata, amoroso, viveu muitos anos, quase quinze!
ResponderExcluirQuanto dói ter de ver nossos melhores amigos partirem, com certeza ficarão eternamente em nossos corações!
Amei ler aqui minha doce amiga, mas a vida é assim, temos de aceitar, há quem diz que até os nossos amigos animaizinhos nos receberão lá no mundo espiritual, gosto de acreditar nisso!
Abraços apertados!
Muito boa a forma, quase intrigante, como relatas a história da tua amiga canina.
ResponderExcluirE bem escrito, como é teu timbre.
Um beijo, Ana, com admiração.
Querida Ana! A emoção tomou conta de mim desde a primeira fase... A história fez-me voltar no tempo! Quem tem (ou teve) uma amiga assim jamais esquece e nunca se despede realmente! As lembranças do olhar e do "falar" sem palavras, ficam impregnadas nas nossas mentes... Outros "amigos" e "amigas" chegaram, alguns já "viajaram"... Mas... Há um lugarzinho em minha vida que não foi jamais preenchido...é dela sempre, da QUERIDA AMIGA!
ResponderExcluirMuita paz!
Um abraço...
A dor de uma perda de uma criação é quase igual a perda de um ente querido ... sei bem o q é isto ... hoje já não crio mais estes vínculos de afeto ...
ResponderExcluirAna Bailune
ResponderExcluirEm casa, em tempos que la vão (campo), entre várias espécies de animais, entre eles, vários felinos. A minha relação com eles, nunca foi além de simples empatia. Mas uma relação de amizade, como a tua é difícil de esquecer,
Beijos
Ana, como são dolorosas as perdas! Esses olhos estarão sempre em suas lembranças, mas o amor que lhe dedicou proporciona conforto quando a saudade chega.
ResponderExcluirPor viver o processo da ausência eterna, vou tentar, aos poucos, retornar. Meus passos são lentos e exigem paradas. Mais uma vez, obrigada pela força e pelo carinho. Amigos, sejam reais ou virtuais, fazem parte de importantes momentos de nossa caminhada. Bjs.
Essa amizade com certeza foi muito linda Ana. Também passei ano passado algo parecido. Também tive que sacrificar uma das minhas gatinhas (tenho 6). Ela tinha 17 anos, já era velhinha e tinha uma vida confortável e boa até aparecer um tumor de mama galopante. É triste e angustiante quando temos que optar pela vida ou pela morte dos nossos animaizinhos. Ainda choro e sinto muitas saudades dela. Mas, enfim, esse é o processo da vida. Beijos!!
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