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sexta-feira, 1 de junho de 2018

O Furacão - conto completo




Não, não há necessidade de explicações. Principalmente porque ninguém estaria interessado em ouvi-las. Se eu fechasse a porta nesse instante, se eu me desintegrasse, sumisse, ou então se de repente eu decidisse fazer um discurso, escrever cartas, explicar-me – não haveria ninguém que quisesse me ouvir. Porque ninguém está interessado em compreender as razões alheias, mas apenas criticar, apontar, acusar, escarnecer. 

Mas eu sinto que enquanto eles se ausentam, pairando sobre mim como se eu fosse uma carniça apodrecida num deserto, eles me olham. Me assistem. Tomam conclusões ao meu respeito. Acima de tudo, eles me julgam. Fazem questão de permanecerem distantes para que possam demonstrar, nem que seja pelo esforço dirigido, a sua indiferença. (Existe indiferença através do esforço dirigido?) Eles desejam a minha atenção à sua desatenção. Se eu falasse, virar-me iam as costas; se eu gritasse, tapariam os ouvidos – embora eles pudessem me escutar perfeitamente, fingiriam que não. Porque é mister que eles me magoem. Querem ter certeza de que seus esforços sejam recompensados, ou seja, que eu me sinta menos. 

Razões? Cansei-me de procurá-las. Explicações? Cansei-me de dá-las. Os sinos tocaram centenas de vezes, os laços foram tão repuxados, que acabaram esgarçados. E um dia, após um puxão mais forte, romperam-se. E quando eles arrebentaram, abrindo comportas de toneladas de água que formaram um rio de distâncias, só eu ouvi. Eles não ligaram. Talvez achassem que eu acabaria, como sempre, tomando o primeiro barco de volta ao porto. Se estranharam ou não, também não sei. Nunca me disseram. Nunca me perguntaram nada. Se falaram alguma coisa a respeito de mim, nunca fiquei sabendo. 

A vida sempre continua. Não importa o que aconteça, ela sempre segue em frente – com ou sem o nosso consentimento, com ou sem a nossa participação. Ou nós a conduzimos ou seremos pisoteados por ela, e eu decidi que gostaria de conduzi-la, afinal. 

Diga centenas de sins a vida toda; seja cordato, solidário, condescendente, maleável, bondoso, compreensivo. Perdoe tudo. Perdoe sempre, e esqueça sempre. Recomece milhões de vezes. Dê razão a quem não a tem. Seja sempre aquela pessoa adorável e sempre disponível. 

Diga não apenas uma vez. Ou apenas diga que vai pensar – às vezes, é o suficiente para que passem a odiá-lo e desprezá-lo com todas as forças. Você será relegado ao último lugar da fila, e finalmente, você será esquecido. Você será alvo de vinganças e de maledicências. Atreva-se a dizer não, se tiver coragem.
E será nessa hora que você enxergará a verdade, aquela mesma verdade que vinha batendo à sua porta tão insistentemente quanto um vendedor de enciclopédia, mas você fingia que não estava em casa ou que não escutava, porque abrir a porta teria significado a necessidade de rompimentos, mudanças, separações. 

O problema com a verdade, é que no momento em que nos atrevemos a dar uma olhadinha para ela, nem que seja de rabo de olho, nunca mais conseguiremos cobrir tudo com o velho véu cor-de-rosa de sempre. Um pequeno vislumbre e terá sido o suficiente para que ela derrame suas cores fortes no nosso campo de visão, e eu prometo que nada nunca mais será como antes, pois quem enxergou a verdade uma vez, nunca mais conseguirá conviver com a inverdade ou remendar o pano da vida com as linhas doces da mentira. 

Não é nada fácil descobrir como os outros nos veem realmente. Não é fácil descobrir que estamos e sempre estivemos irremediavelmente sozinhos. Mas depois, fica mais fácil quando a gente se acostuma e aceita. Com o tempo, vai ficando cada vez mais fácil. Haverá muitas recaídas, nas quais você há de se perguntar se não seria possível voltar atrás e reencontrar aquele velho e conhecido caminho, por onde você já passou centenas de milhares de vezes, mas descobrirá que não; uma vez que a escolha foi feita, não há como retornar ao velho caminho. O que existe adiante é apenas... uma estrada incógnita. Uma história que você terá que aprender a escrever sozinho, sem as penas alheias, sem os direcionamentos alheios. Você sentirá medo e solidão. Depois, compreenderá que todo caminho é difícil no começo, e que a solidão é tudo o que você sempre teve. Porque ela é tudo o que todo mundo sempre teve, mesmo os que não enxergam isso. 

Como olhar no espelho e tentar reencontrar velhos rostos traçados pela linha da falsa aparência? Não há como jogar com a verdade. Ela não tem parceiros de jogo, ela só tem súditos. É ela quem comanda tudo, embora seja paciente até que a descubramos. E para que isso aconteça, será preciso que haja muitos tombos e decepções, muitas lágrimas e traições, muito medo sob os véus cor-de-rosa.

A gente espera que as pessoas mudem. A gente espera que o sofrimento seja como uma bigorna na qual todos somos moldados, assumindo novas formas mais condizentes com o que se espera dos relacionamentos e convivências. É difícil descobrir que existam pessoas a quem o sofrimento nada causa; elas não se deixam moldar. Choram, imploram e rezam enquanto estão sofrendo, fazendo promessas de que se conseguirem tal e tal coisa, tornar-se hão pessoas melhores; mas quando a nuvem de poeira finalmente baixa, elas voltam a ser como sempre foram. Porque elas não mudam. E descobrir isso é realmente frustrante. A dor deveria unir; pelo menos, é isso que dizem todos os poetas. Ou quase todos. Mas muitas vezes, a dor separa, e a perda é como a cola que unia as páginas de um livro e que se quebrou, e as páginas passam a voar por aí sem direção ao primeiro vento.

E diante disso tudo, você descobre que seu caminho será solitário. Você perdeu o respeito pelas pessoas que deveria respeitar, porque descobriu que elas nunca respeitaram você. Você percebe que passou anos desperdiçando seu amor com quem nunca o amou. Dedicou seu respeito e sua consideração a quem jamais mostrou reciprocidade. Mas se você puder ser forte, perceberá que foi melhor assim. Porque nada o deixará mais forte do que sentir-se fraco algumas vezes. Nada abrirá mais os seus olhos do que uma coleção enfileirada de desilusões de todos os tipos. Nada fará com que você reconheça melhor a verdade e as dissimulações do que cair em armadilhas de mentiras várias vezes na vida. Nada o deixará mais forte do que chorar lágrimas amargas pelo que perdeu, e perceber que no final das contas, você nunca realmente teve aquilo que pensava que tinha. 

E então, um dia você acorda e percebe que não perdeu nada. Quem perdeu foram eles. 

O que dirão de você o escandalizará, até que chegue ao ponto em que só o fará rir: você será chamado de orgulhoso, distante, frio, incompreensível, difícil, preconceituoso. Servirá como um espelho para que eles recitem seus próprios defeitos enquanto pensam que estão falando de você. 

De longe, você vai observar os mesmos velhos jogos sendo jogados, as mesmas armadilhas e trapaças sendo armadas, as mesmas velhas regras sendo recriadas e burladas, as promessas sendo quebradas, e dará graças por não estar mais no meio daquele furacão. 






quarta-feira, 3 de maio de 2017

JUNTO AO CORAÇÃO - Miniconto






Miniconto


"O coração do homem-bomba faz tum tum
Até o dia em que ele fizer bum!"

Zeca Baleiro



. . . .


Ela era linda, envolta em véus esvoaçantes de azul e dourado. A mecha de cabelo negro aparecia como uma faixa em volta da testa, debruando o véu. De vestido longo, sentada à mesa junto à porta do café movimentado, ela chamava a atenção de todos que entravam e saíam. 

Os homens ficavam encantados por seus olhos verdes, e as mulheres  admiravam sua beleza exótica com silenciosa inveja. Será que estaria esperando por alguém? Com certeza, uma jovem tão bonita não deveria estar sozinha em um país estranho. 

De onde estava, ela olhava as pessoas a sua volta, demorando-se nos rostos felizes das crianças e trocando sorrisos com elas, que ficavam encantadas pela moça bonita. Ela parecia absorver a atmosfera tranquila, o burburinho das conversas, os risos e vozes que se intercalavam, bebendo tudo aos golinhos junto com o seu chá. 

Ela aguardava um sinal. Apertava na mão a pequena chave dourada que lhe abriria as portas para uma vida perfeita. Junto ao coração, trazia um segredo  do qual ninguém suspeitava. Estava feliz, e emanava paz. Daqui a pouco, a bomba que estava escondida junto ao peito explodiria, transformando  tudo e todos em milhões de pedacinhos coloridos que a elevariam ao céu, onde ela era aguardada.






quarta-feira, 12 de abril de 2017

SALVAÇÃO








E quando, surpresos,  perguntaram ao poeta por que ele não salvava seus poemas em arquivos, ele simplesmente respondeu, encolhendo os ombros:

"Porque são eles que me salvam."




quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Em Uma Terra de Homens





Em Uma Terra de Homens


Vivemos todos em uma terra de homens, e portanto todos somos da mesma espécie: a humana. Mas alguns acham-se deuses - por terem estudado mais, por saberem de coisas que a maioria das pessoas não sabem, por desfrutarem de uma posição social mais privilegiada, enfim, por se acharem com mais direitos do que os demais. Mas a história tem provado que em uma terra de homens, aqueles que se acham deuses cedo ou tarde encontrar-se-hão com o espelho da verdade.

É exatamente assim que eu vejo a chegada dos médicos cubanos no Brasil. 

Sou totalmente favorável, pois faço parte do grupo das pessoas que vivem no mundo real; o mundo onde alguém chega a um hospital e espera horas por um atendimento que nem sempre acontece, e muitas vezes, é olhado 'de cima' por um profissional da saúde que se acha um deus; isto, quando eles se dignam a erguer os olhos para olharem para nós. Em ocasião da internação de minha mãe em um hospital público, lembro-me que conversei com alguns médicos que olhavam para mim como se eu fosse um inseto.

Não estou aqui fazendo generalizações, e tenho certeza que existem muitos profisisonais éticos e dedicados. Vivemos em um país livre, e aqueles médicos que se sentem de alguma forma prejudicados pela chegada dos médicos cubanos tem o direito de expressar seu desagrado; mas de nada adianta uivar debaixo da arvore errada. Destratar estes médicos apenas porque eles aceitaram vir até aqui para fazer um trabalho que a maioria deles recusou não resolverá o problema; que reivindiquem seus direitos junto ao governo, sem que precisem desfazer-se de seus colegas de profissão ou humilhá-los publicamente como eles tem feito.

A melhor forma de entender a posição de alguém, é colocar-se no lugar dele. Tenho certeza de que estes médicos que fizeram piquetes, reagindo violentamente à chegada dos médicos cubanos, não gostariam de serem tratados da mesma maneira. Não vejo de que forma a chegada destes últimos poderá afetar o trabalho dos que já estão aqui, já que eles irão para aqueles locais onde ninguém mais quis ir. Porém, eu não sou uma profissional da saúde, e portanto não sei de todos os lados da história; mesmo assim, achei uma tremenda falta de educação e civilidade a recepção que os médicos brasileiros deram aos seus colegas cubanos.

Estes médicos são como propriedade do governo cubano, e seus salários serão pagos ao governo de Cuba, que repassará a eles apenas uma pequena parte do que o governo brasileiro pagará. Mas são profisisonais experientes, e dizem, a medicina cubana é uma das mais avançadas. Quanto a passar pelo teste que todos os médicos estrangeiros precisam fazer para trabalhar no Brasil, tenho certeza de que a maioria dos que estão exigindo isto, eles mesmos, não passariam, caso a ele submetidos.

Esta manhã fiquei sabendo, através de um de meus alunos, que uma repórter postou um comentário no Facebook referindo-se à aparência de uma das médicas cubanas, alegando que esta parecia uma empregada doméstica; ofendeu não somente à médica, mas também à classe das empregadas domésticas! Foi absurdamente grosseira, inconveniente e preconceituosa. Esta, com certeza, é mais uma que um dia vai encontrar seu espelho da verdade.

sábado, 18 de agosto de 2012

Almas Atormentadas - Conto de terror







Era um velho manicômio, já desativado. O prédio de paredes que outrora foram brancas, encimava a colina com suas janelas banguelas de vidraças, e havia apenas um vigia noturno, que de vez em quando, fazia a ronda em volta do prédio (apenas para justificar seu salário de vigia), quando não tinha mais o que fazer. Mas mesmo ele, jamais tivera coragem de adentrar o prédio, pois havia muitas histórias horríveis sobre aquele local.
 
 Histórias que falavam de suicídios, choques elétricos, aprisionamentos em solitárias, serial killers em camisas de força que eram jogados para todo o sempre em celas não-acolchoadas, para que batessem suas cabeças contra a parede até que morressem com as mesmas arrebentadas. 
 
Até que a modernidade veio, questionando os métodos de ‘cura mental’ usados naquele manicômio, que acabou sendo desativado.
 
Todos se foram: loucos, médicos, enfermeiros. Mas havia uma única cela, na qual ninguém jamais entrava; a comida e a água eram empurradas para dentro através de uma abertura na base da porta de ferro. Se alguém olhasse para dentro, através da nesga de vidro, veria lá um homem solitário, de cabelos desgrenhados, unhas compridas e pontudas, olhos vermelhos e injetados. Cumpria sua pena como o louco que assassinara mais de vinte mulheres. Era um serial killer perigoso.
 
Seu nome? O mais comum e confiável possível: Justino. Mais conhecido como Justino, o Matador.
 
O último enfermeiro que tentara dar-lhe um banho, acabou perdendo o nariz, que ficou entre os dentes de Justino. Uma das enfermeiras, ao tentar dar-lhe uma injeção calmante, fora estrangulada. Ele conseguia soltar-se das camisas de força que o prendiam, tal a sua enorme agilidade e força física. Mesmo quando ele era alvejado, de longe, por tranqüilizantes, como se fosse um animal selvagem, o efeito dos mesmos era muito mais curto do que em pessoas normais. 
 
Por que não o deixavam morrer, como faziam com vários outros? Porque Justino era filho adotivo de um magnata do petróleo, que pagava caro para que ele fosse mantido vivo. Este magnata era tutor do rapaz, e enquanto ele permanecesse vivo, receberia uma imensa fortuna, que seria imediatamente doada à caridade em ocasião de seu passamento. 
 
Assim, a lenda de Justino, O Matador, corria pelos corredores do hospital. Ninguém se atrevia a chegar perto dele, e decidiram que fariam apenas o mínimo para que ele permanecesse vivo.
 
Mas um belo dia, o magnata, pai adotivo de Justino e seu tutor, faleceu de um ataque cardíaco. Assim, a fortuna de Justino foi doada para a caridade, como deveria ser. Isto ocorreu pouco antes da desativação do manicômio, e Justino, sem o seu ‘desinteressado protetor,’ ficou cada vez mais esquecido.
 
Às vezes, esqueciam-se até mesmo de alimentá-lo, e seus gritos de fome ecoavam pelo hospital. Quando, finalmente, as portas fecharam, acabaram esquecendo-se dele. Ou teria sido um esquecimento proposital? Teria sido uma vingança, perpetrada em nome de suas muitas vítimas inocentes?
 
Justino pereceu lentamente em sua cela, de fome, frio e sede. De nada adiantou-lhe gritar, pois não havia ninguém para ouvi-lo. O corpo , ou seja, o que restou dele, foi encontrado muitos anos depois, por um grupo de garotos que brincavam nas ruínas do hospital. Ninguém mais se lembrava dele, e seus ossos foram sepultados em uma cova coletiva. 
 
Mas o que ninguém sabia, é que sua alma doente e aprisionada ainda vagava por ali, presa para sempre entre as paredes em ruínas do manicômio. Como companhia, apenas as mesmas almas atormentadas que com ele conviveram.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Aos Olhos do Observador-Conto




Dois amigos passeavam pelo jardim da casa de um deles - mais favorecido pelas posses. Este último tinha convidado o primeiro para visitá-lo, pois sentia-se vazio e infeliz, e necessitava de alguém com quem conversar. Vamos chamá-los de Zé (o mais feliz) e Chico (o infeliz).

Enquanto Zé caminhava pelo jardim, reparava na beleza das árvores: seu amigo tinha plantadas várias fruteiras: goiabeiras, pitangueiras, limoeiros, laranjeiras, jabuticabeiras, pessegueiros e ameixeiras, onde pousavam passarinhos de todas as cores, cantando felizes. Algumas frutas maduras tinham caído no chão e permaneciam sob as copas das árvores, e alguns esquilos alimentavam-se delas. Logo, Chico reclamou:

"Não sei mais o que faço para acabar com esses pássaros malditos! Comem todas as frutas!"

O amigo Zé percebeu, mas ficou calado,  que se não fossem pelos pássaros, as frutas apenas apodreceriam nas fruteiras, pois o amigo não as colheria jamais.

Passaram por um lindo córrego, pequeno, mas que dava ao jardim um ar de beleza e frescor, além de emitir um ruído reconfortante. Zé achou aquilo maravilhoso, mas Chico observou com amargura:

"Estou pensando em mandar aterrar este riacho. O barulho me incomoda durante a noite."

Enquanto caminhavam, eram seguidos de perto por Bibo, o cão vira-latas de Chico. O animalzinho cheirava as moitas, corria, brincava e pulava; de vez em quando, trazia um galho seco, que Chico jogava para ele, que saía correndo e latindo atrás do galho, trazendo-no de volta para que Chico o jogasse novamente. De repente, Chico bradou com impaciência:

"Sai daqui, animal estúpido! Deixe-me em paz!"

O animalzinho assustou-se, e saiu correndo com a cauda entre as pernas, indo esconder-se sob uma moita. Penalizado, Zé entendeu que provávelmente, Bibo estava acostumado àquele tipo de tratamento, pois parou de seguí-los.

Finalmente, o passeio terminou na varanda, onde havia uma rede, duas cadeiras confortáveis e uma jarra de refresco de frutas esperando por eles em uma mesinha. Após servir-se de um copo, Zé falou:

"Você tem um belo espaço aqui, Chico! Uma beleza só... árvores de frutas, flores, passarinhos, um cão... e até um riacho! Luxo só!...

Suspirando fundo, Chico respondeu:

"Quer saber? Comprei este espaço para fugir da vida agitada da cidade grande, onde não aguentava mais viver. Tanta poluição e barulho, competição... mas acho que me decepcionei, não consigo ser feliz aqui, assim como não era feliz por lá. Minha mulher finalmente me deixou, levando os meninos, e fico aqui sozinho o tempo todo."

Desejando animar o amigo, mas sabendo que qualquer coisa que dissesse poderia ser inútil, Zé pensou bem antes de falar. Depois, tomando um gole de suco e olhando em volta, para a beleza do lugar, ele disse:

"Amigo, me desculpe, mas se você não é feliz aqui, não será em lugar nenhum! Olhe só em volta, tanta beleza e riqueza... sabe, eu acho que o que lhe falta, é deitar naquela rede ali, que está balançando sozinha pelo vento desde que cheguei... e de lá, observar o que você tem, e dar mais valor, ser mais grato por tudo. E ter paciência com as pessoas, pois você sempre foi tão 'estourado,' que acabou afastando todo mundo."

Chico olhou para o amigo,  pensando no quanto aquelas palavras eram simplórias... só mesmo o Zé para ter um pensamento tão bobo! Mesmo assim, sabia que ele estava tentando ajudar. Para agradá-lo, foi até a rede e deitou-se - algo que nunca tinha feito antes. E não é que a paisagem de lá era mesmo bonita?

De mansinho, Bibo foi se aproximando, e deitou sob a rede. O dono começou a acariciá-lo. O 'barulho' do rio tornou-se bem mais agradável, até que virou  um ruído relaxante e delicioso. Dali ele podia enxergar os passarinhos, e começou uma conversa com o amigo, na qual ambos, lembrando os tempos de infância em que brincavam perto de uma mata, começaram a identificar algumas espécies.

No final da tarde, Chico estava com as mãos sujas de terra - passaram algumas horas capinando canteiros e replantando mudas de flores - suado, e sentindo-se revigorado pelo trabalho. Além de tudo, sentia por dentro uma sensação que nunca tivera: a felicidade.

Descobriu-a dentro dele, ao deitar-se naquela rede.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

O Sapo Insólito - conto





















O SAPO INSÓLITO





Quando mudou-se para aquela velha casinha com seus dois filhos, logo pós o divórcio, Joana ainda vivia um clima de final de festa, tendo na boca um gosto de ressaca por ter terminado um casamento ruim que durara mais de dez anos e ao mesmo tempo que a aventura de uma nova vida a excitava, deixava-a insegura.



Tudo era novo: o divórcio, a mudança para a velha casinha em um bairro afastado do centro, o novo emprego, a escola nova das crianças. Muitos sonhos a sonhar, enquanto outros ainda agonizavam no caldo dos últimos acontecimentos.


Foi Bruno, seu filho de sete anos, quem primeiro notou a grande pedra coberta de hera que ficava logo na entrada do jardinzinho, junto ao portão. Logo subiu nela, empunhando sua espada de plástico, tomando conta do território. Passou a explorar seus arredores, e percebeu que, em um dos cantos, havia uma profunda grota, que levava para dentro de um túnel com uma pequena abertura. Mas Joana estava ocupada demais com a arrumação do novo lar para dar-lhe atenção. Mariana, sua filha de dez anos, pegou a mangueira do jardim- que media doze metros - e começou a introduzi-la no túnel, para saber qual a profundidade.


Pelo menos dez metros de mangueira penetraram a escuridão sob a pedra.


Assustada com a possibilidade de um morador perigoso, como uma serpente, por exemplo, Joana proibiu que as crianças voltassem a brincar nas proximidades da pedra.


E foi naquela noite, enquanto trabalhava na cozinha, portas abertas devido ao calor, que ela teve a impressão de estar sendo observada. Era muito forte a impressão, e ela ergueu a cabeça, olhando em volta. Percebeu, com o canto dos olhos, que uma forma escurecida fazia-lhe companhia: um enorme sapo-boi!


Eles se olharam por alguns instantes, e ela decidiu que deveria colocá-lo para fora de casa. Com uma vassoura e muito cuidado, pois não queria ferí-lo, empurrou-o porta afora. Achou que talvez fosse ele o morador da caverna misteriosa.


Dias depois, enquanto pendurava a roupa no varal, lá estava ele novamente, a observá-la de um canto do jardim. Joana percebeu que ele tinha um estranho olhar, quase inteligente, que a examinava descaradamente, parecendo ler tudo o que se passava dentro dela. Ajoelhou-se em frente a ele, enxugando as mãos nos jeans. Passou a observá-lo com mais cuidado. Ele nem se mexeu devolvendo-lhe o olhar, a garganta inflando levemente. Ela estendeu uma das mãos para tocá-lo, movida por uma mórbida curiosidade, e nem assim, ele se moveu.


Ela sentiu sua pele áspera sob os dedos. Havia uma pegajosa humidade. Ele parecia estar gostando da carícia, pois fechou os olhos. De repente, Joana pareceu voltar a si, e achou-se ridícula! O que as crianças iriam pensar, se a vissem naquela situação? Achou que estava carente demais... imagine só! Acariciar um sapo!


Uma semana depois, durante uma tempestade, Joana preparava-se para entrar no chuveiro, quando, ao tirar a camiseta suada, percebeu que a jogara sobre alguma coisa escura que estava no chão do banheiro. Rezando para que não fosse uma aranha, apanhou a camiseta com a ponta dos dedos, e lá estava ele novamente: seu admirador sapo!


Ela entrou no chuveiro e, de repente, sentiu ímpetos de exibir-se para o seu batráquio admirador, ensaboando-se de maneira sensual, como se estivesse fazendo um comercial de sabonete. O sapo não tirava os olhos gulosos dela. Joana começou a achar aquilo tudo muito estranho, pois pela primeira vez desde seu divórcio, era acometida por desejos sexuais.

 Espantando aqueles absurdos pensamentos libidinosos, ela desligou o chuveiro e passou a enxugar-se. Foi quando ouviu uma voz masculina e quente, que a fez dar um pequeno salto:

 -Você é muito bonita!

 -Quem está aí?


Lá fora,a chuva era torrencial, e ela pensou que poderia ter ouvido o som da TV que as crianças assistiam. Mas a voz respondeu-lhe:

 -Sou eu, o sapo.

 Joana olhou para ele, que estava calmamente sentado sobre a tampa do vaso sanitário, terminando de engolir um pequeno besouro.


-Você... fala?!

 -Mas é claro! Por que a surpresa?

 -Ora você é um... é um...
-Sapo? Não tenha tanta certeza!

Joana passou a cobrir-se com a toalha, pudicamente.


-Bem, então o que é você?

 -Sua mãe nunca contou-lhe histórias quando você era pequena? Eu sou um príncipe encantado!

 -Como assim?! Acho que eu estou ficando maluca...
- Pense o que quiser... mas acho que você deveria considerar bem uma proposta que vou fazer a você!

-Qual?


Ele pulou para o chão, e foi aninhar-se junto aos pés dela. Pediu-lhe que se ajoelhasse junto dele, para ouvi-lo melhor.

 -Beije-me!

 Joana não acreditava no que estava ouvindo.

 -O que?! Você está maluco?

-Ora, até pouco tempo, você é quem tinha enlouquecido... seja mais crédula! Beije-me, e eu me transformarei em um príncipe encantado que viverá ao seu lado para todo sempre.


Ela considerou a idéia. Ficou de pé, e começou a caminhar ao redor dele.

 - E o que eu ganho com isso?

-Segurança financeira. Afinal, eu sou um príncipe! E é claro, noites de volúpia inesquecíveis, escola particular para suas crianças, muitas festas e bailes na corte, e...

 -Mas para ter tudo isso, basta que eu o beije?

-Bem... não é só isso... tem uma outra coisa!

-E o que seria esta 'outra coisa?'

Ele respondeu:


-Não posso ser um príncipe o tempo todo... posso viver como príncipe durante uma semana, e como sapo uma outra, alternadamente.


-Mas se é só isso, por mim, está tudo bem!


-Bem, eu ainda não terminei: quando eu for sapo, você será uma rã. Mas é só por uma semana, alternadamente, como eu já disse...


Diante daquela proposta, Joana pediu-lhe um tempo para pensar melhor.

 Continuou com sua vida, agindo como se nada tivesse acontecido. Ela gostava da liberdade que adquirira após o divórcio. Gostava do novo emprego e dos novos amigos que fizera. Quando pensava em relacionamentos sérios, ainda sentia que não os desejava... queria gozar um pouco mais de sua liberdade.

 Mas sabia que, caso sua vida tomasse um rumo realmente desencantador, tinha sempre a alternativa de beijar o sapo...
 
 
 


 

terça-feira, 17 de julho de 2012

ADEUS, SETEMBRO! conto





Adeus, Setembro! - conto

















Era a última chuva de primavera, e ela tentava manter-se seca sob o guarda-chuva, enquanto esperava. Aquele local, que tinha sido palco de uma dolorosa despedida há um ano, fora também escolhido como o local de um promissor reencontro. Tratava-se de um parquinho infantil, desses com balanços, gangorra, muitas árvores, banquinhos onde as mães se sentavam para observar suas crianças brincando, vendedores de balões coloridos, carrocinhas de pipoca, algodão doce e música de realejo.

Mas hoje, ele estava vazio. Exceto pela presença dela, e das lembranças que desfilavam diante de seus olhos e se dissolviam nas poças d'água. A chuva caía seguindo sempre o mesmo rítmo, quase intensa, formando uma cortina entre ela e o restante da paisagem. Apesar do atraso, ela esperava.


Tinham um encontro marcado. O fato de terem se separado, há um ano, não significava o fim. Ele precisou partir por motivos além de sua vontade: fora convocado para trabalhar nas forças de paz do exército, em um país distante. No começo, trocavam cartas e e-mails apaixonados, mas cinco meses depois de sua partida, as cartas e e-mails cessaram sem aviso prévio. Dias depois, ela recebeu uma carta oficial, que dizia que ele tinha desaparecido.


Ela não se desesperou, como os outros. Sabia que ele não era homem de não cumprir as promessas que fazia. Ao despedir-se dela, jurou encontrá-la novamente naquele mesmo local, onde se separaram, e por isso, ela estava ali. Seu desejo de revê-lo era tão forte, que ela seria capaz de esperar por ele a vida toda. bastaria que houvesse um fio de esperança, apenas, bastaria que ele continuasse desaparecido. Ela esperaria. A vida toda.


Quando chegou setembro, ela pareceu encher-se de vida. Atravessar aquela primavera seria como viver a antecipação de reencontrá-lo, portanto, ela apreciou cada cor, cada flor, cada momento daquela estação. Alguns pensavam até que ela o tinha esquecido, devido a sua vivacidade. Mas ela - só ela - sabia que sua alegria era a certeza (não mais a esperança) que gritava dentro dela, que, ao final daquela estação, exatamente no último dia de primavera, ele voltaria, como tinha prometido. Dali em diante, todos os dias seriam dias de setembro.


Duas horas se passaram. A chuva foi diminuindo aos poucos, e as nuvens foram descortinando um céu alaranjado de final de tarde. Vapores começaram a subir das copas das árvores, e passarinhos cantavam, despedindo-se da primavera. Mas ela não foi embora; sentou-se em um dos bancos da pracinha, sentindo que o grito de certeza dentro dela aos poucos tornava-se um rouco murmúrio de esperança.


Foi quando ela viu surgir, do meio da névoa, uma figura masculina em um sobretudo escuro. Levantou-se, coração aos pulos, e prendeu o olhar naquela direção. Queria ter certeza. E teve: era ele! Aos poucos, ele se aproximava, parecendo mais flutuar em direção a ela do que caminhar. Ela quis correr em direção a ele, e surpresa, percebeu que seus pés estavam grudados no chão. Seria emoção?



Finalmente, ele parou diante dela. Ela podia ver a nuvem de vapor que emanava dos cabelos dele, e viu-se refletida dentro de suas pupilas. Mas quando tentou tocá-lo, não pode fazê-lo: era incapaz de erguer o braço, como se uma força a mantivesse imóvel.

 Ela ouviu - ou sentiu - o pensamento que vinha dele, em uma única palavra: "Continue." Aos poucos, ela compreendeu que ele não estava mais ali. Não fazia mais parte de seu mundo. Tinha vindo apenas cumprir uma promessa. Viu quando uma lágrima rolou no rosto dele, e sentiu que elas rolavam sobre seu rosto em profusão.


De repente, a imagem dele foi se afastando cada vez mais, até desaparecer pelo mesmo caminho de onde tinha surgido. Ela sentiu-se rodeada por um silêncio intenso, mas pouco a pouco, passou a ouvir novamente o canto dos pássaros e barulhos de carros na estrada próxima. A tarde já estava tingida por um intenso tom avermelhado, e olhando para o céu, ela avistou a primeira estrela.

 Suspirou fundo, tentando compreender o que ela tinha acabado de vivenciar. Depois, despediu-se de setembro.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

A Coceira - Conto



Há alguns dias, ela vinha sendo incomodada por uma coceira intermitente nas suas partes baixas. Consultara o ginecologista, mas este, após vários exames minuciosos, nada encontrou de errado com a moça. Desesperada, ela consultou outros especialistas: dermatologistas, acupunturistas e até um Pai de Santo - que, por incrível que pareça, foi quem deu-lhe o melhor diagnóstico:

-Suncê tá sofrendo de tédio, zinfia.
-Tédio, eu?!
-Tédio, sim...
-Impossível! Eu tenho uma vida agitada, trabalho oito por horas por dia, vou à academia três vezes por semana, saio com as amigas duas noites após o expediente, faço pós, jazz, enfim... tenho uma vida agitada!

O Preto Velho, que ouvira seu relato pitando seu cachimbo cuidadosamente, apertou os olhinhos e observou:

-E cumé que tá seu casamento, zinfia?

Ela hesitou, antes de responder:

-Hã... bem...
-Eu num disse que suncê tá entediada?
-Mas... já estamos casados há seis anos, meu Pai. É natural... não é?

O Preto Velho, virando a cabeça para trás, solta uma gargalhada, respondendo:

-Depende... cumé que anda as noite docês?
-Bem, eu confesso que já não há mais a mesma paixão de antes. No sexo, eu quero dizer.
-Mas e nas outras coisas, fia?
-Que outras coisas?

O Preto velho dá uma longa baforada em seu cachimbo:

-Suncês não tem mais nada em comum? Suncês num conversa de noite? Não conta história? Num fala do dia? Num ri?
-Temos, um filho! Bem, é isso, temos um filho em comum.
-Num é disso que eu tô falando... que coisas suncês tem juntos? Se divertem? Tem amizade? Cumplicidade?

Ela não responde. Olha para as mãos. O Preto Velho diz:

-Essa coceira aí é por causa de que suncê só casou com a parte de baixo! E num existe fogo que queima pra sempre com a mesma intensidade, fia... tende a ir virando uma brasinha, e se não tiver lenha pra manter acesa, apaga de vez... e a lenha tá na ... na... cumé que ocês dizem, quando dois moram juntos...
-Convivência?
-Isso! Cunvivência! É na cunvivência que o casal vai buscar lenha pra manter o resto aceso... hehehehe...

A moça, corando um pouco (jamais imaginaria falar sobre um assunto daqueles com um Preto Velho), responde, torcendo as mãos no colo:

-Mas a minha analista me disse que o sexo é a parte mais importante do casamento, e eu fiz tudo direitinho: realizei todas as nossas fantasias, comprei uns equipamentos para apimentar a relação, me vesti de enfermeira, de empregada, e de estudante, de prostituta, entre outras coisas... mas mesmo assim, chegou uma hora em que aquelas artificialidades todas começaram a deixar de surtir efeito...

-Hehehehe... porque o que é erguido em cima de coisa artificial, é artificial, e acaba caindo com o tempo. Aliás, zinfia... hehehe... tudo acaba caindo com  o tempo... hehehehe... umas brincadeira de vez em quando é bom, mas se for só isso, num sobra muita coisa!

O Preto Velho serviu-se de um pouco de vinho em sua cuia de coco, e bebendo uma golada,  acrescentou:

-Zinfia...as parte de baixo é importante para se ter uma relação, mas num é tudo, não... tem as outras partes, que são essa daqui (ele coloca a palma da mão sobre o coração) e essa daqui (ele toca a própria cabeça). Se num tivé as três, não dura! E tem tumém a amizade. 

-Mas, Pai, e a minha analista?
-Ela é casada, fia?
-Divorciada! Duas vezes.
-Ela tem perna de calça, fia?
-Muitos... sabe, após tantos anos de análise, ela acabou me contando um pouco da vida dela.
-Ela num tem marido, então?
-Não!
-Ela faz muito sexo?
-Disse que sim!

O Preto Velho, oferecendo a cuia com vinho para a moça beber, solta uma gargalhada e diz:

-Hehehehehe... cada um fala do que sabe, fia! Ela fala dela mesma! E suncê, ao invés de ficar vivendo baseada no que os otro diz, no que os otro acha certo, no que os otro acha errado, devia se ocupar de construir uma vida procê. O mundo tá cheio de gente que acha que a própria vida pode servir de exemplo pros outros... hum-hum...

segunda-feira, 4 de junho de 2012

A Ciganinha





"Vai a sorte, senhora? Tarôt, mão, presente, passado e futuro..."

Este era o seu pregão, a todos  que passavam por ela - uma ciganinha de porte miúdo, já de meia-idade, sentada sozinha num banquinho no calçadão da Praia de Iracema. Tinha os olhos contornados com lápis preto, meio-borrados, e os lábios pintados por um batom vermelho sem-brilho. Cabelos pretos e longos,um tanto ensebados e já ficando grisalhos. As roupas , uma fantasia de cigana, estavam rotas e sujas.

Ela fica ali o tempo todo (passamos por ela duas noites seguidas). Tem o olhar um tanto perdido, e não sei como ela pretende convencer alguém de que é capaz de ler o futuro. Uma pessoa tão sem expectativas... fiquei pensando na possível vida que aquela moça leva: muito pobre, talvez more muito mal ou nem tenha onde morar. Quem sabe, tem filhos pequenos? Ou talvez seja totalmente sozinha.

Pode ser que ela sonhe com uma cigana de verdade, que um dia, há de chegar perto dela, sentando-se ao seu lado, tomando-lhe as mãos e lendo, para ela, um lindo futuro!...

sexta-feira, 25 de maio de 2012

CONSIDERAÇÕES DE UMA MENINA







Naquela casa, ultimamente, imperava um silêncio misterioso. A menina observava o movimento, o entrar e sair de dentro do quarto do irmãozinho doente. Vinham médicos (estes, sempre carregavam uma maleta e vestiam branco); vinham outras visitas (tias, primos e primas. Os adultos cheiravam à naftalina, e os menores, algo entre chiclete de frutas e tangerina). Todos entravam e saíam após alguns minutos, silenciosamente...

A menina quase não recebia nenhuma atenção, a não ser por algum adulto que, de vez em quando, passava-lhe a mão pelos cabelos.

Apenas a avó conversava com ela. Já muito idosa, ela tentava fazer com que a menina fizesse um pouco de silêncio - afinal, o irmãozinho precisava dormir - e procurava, como podia, substituir-lhe a mãe, ocupada nos cuidados com o menor. Para distraí-la, a avó contava muitas histórias. As duas viviam sentadas na calçada lá fora, entrando e saindo de mundos encantados, onde conheciam fadas, princesas, príncipes e bruxas malvadas - e nem tão malvadas. Às vezes, uma joaninha pousava ali perto, e imediatamente, a avó inventava alguma história sobre ela.

De repente, no meio de uma dessas histórias, a menina pergunta, de sopetão:

"Vó, o que é morrer?"

A velha senhora suspira, e tenta escolher bem as palavras:

"Bem, minha querida... todos nós nascemos, crescemos, daí nos casamos, temos filhos, depois netos... e a gente fica velhinho, velhinho... e depois, morre!"

Ela parece refletir por alguns instantes.

"Só gente velha morre?"

"Não, não... às vezes, gente nova também morre! Podem ficar doentes, ou sofrer algum acidente..."

"Mas... como é morrer?"

Não querendo mentir para a menina, mas também não pretendendo que ela pudesse compreender uma explicação exageradamente elaborada, a avó responde:

"Não sei, querida... alguns dizem que é como dormir para sempre."

"E nunca mais se acorda, vó?"

"É como eu já te disse, não sei. Tem gente que acha que a gente vai para um outro lugar; não com este corpo, mas com uma fumacinha que mora dentro da gente, chamada 'alma.' A alma sai do corpo quando a gente morre, e viaja para outro lugar."

A menina parece lembrar-se de alguma coisa de repente:

"Para o céu!" - Ela diz, apontando a imensidão azul. A avó concorda:

"Sim... para o céu."

"Mas... não tem gente que vira fantasma?"

A avó ri:

"Alguns dizem que sim... mas eu nunca vi nenhum, e você?"

"Eu não! E se eu visse, saía correndo!"

Ela parece ficar quieta por algum tempo, e se distrai, brincando de enfeitar as unhas compétalas de flores. A avó espera, pois conhece  a neta, e sabe que ela terá mais perguntas. A menina olha para ela:

"Vó... quem morre primeiro, gente velha ou gente nova?"

"Ah... geralmente, gente velha."

"Mas então... a vó vai morrer antes de mim?"

"Espero que sim, querida!"

"E antes do meu irmãozinho?"

A menina vê uma sombra passar pelo rosto da avó.

"Não sei, meu bem... você sabe, seu irmãozinho está muito doente!"

"Ah... mas o Totó ficou muito doente um dia, mas depois, ficou bom! Meu irmão não vai ficar bom?"

A velha senhora enxuga uma lágrima furtiva.

"Espero que sim, meu bem... espero que sim..."

Dizendo isso, a avó abraça a menina, e as duas ficam assim, quietinhas, olhando o céu e adivinhando formas nas nuvens.

Enquanto isso, a menina pensa na vida. E enquanto pensa, ela vai crescendo, e compreende que viver ou morrer é apenas uma questão de estarmos vivos, pois não importa quantos anos alguém possa ter, ou caso seja ou não saudável; isso não determinará quem vai antes ou quem vai depois. Quem está doente, pode vir a curar-se, enquanto alguém que está saudável, pode acidentar-se e ir bem antes daquele que está se curando. O dia da morte é sempre um mistério, como misteriosos são os caminhos da vida.

Viver ou morrer são dois lados de uma mesma página, que ninguém sabe quando será virada. Por isso, tudo o que nos resta, é não pensar muito nisso, e deixar que o Vento de Deus decida quando virá-las. Se vivermos com intensidade, teremos vivido o bastante, e isso é o que importa.

Publicado em: 27/12/2010 13:36:02

terça-feira, 22 de maio de 2012

A SENTINELA - um conto



Ela morava justamente na fronteira entre os dois países, sendo que eram países  inimigos, e ela nascera justamente no país sem liberdade; ela nem sequer sabia porque, mas desde que se recordava de si mesma, entendia que seu mundo estaria limitado àquela fronteira. Só poderia ir até ali. Jamais saberia o que havia do outro lado. Ouvia falar em liberdade e melhores condições de vida. Era como viver em um mundo fora do mundo.

Às vezes, ela ficava horas sentada nos degraus da porta da cozinha, olhando as cercas de arame farpado e as sentinelas, em ambos os lados da cerca, que iam e vinham, de um lado para o outro, o dia todo. Eram todos iguais, ou pelo menos, assim lhe parecia.

Tinha ouvido falar de um local aonde havia um buraco na cerca, por onde, de vez em quando, alguns conseguiam passar para o outro lado. Ninguém sabia porque o buraco jamais fora consertado ou vigiado com mais vigor; o fato é que ele estava ali, e que todos sabiam de sua existência. Dizia-se que para fugir por aquele buraco, era preciso juntar muito dinheiro. Mesmo assim, não havia nenhuma garantia de segurança.

Às vezes, ela ouvia tiros, e as pessoas murmuravam pelos cantos: "Pegaram eles!" Mas ninguém dizia quem eram eles. Noutras ocasiões, após um momento de tensão, em que senhoras torciam as saias dos aventais em apreensão, a pequena vila parecia quedar-se em expectativa durante alguns minutos. Ninguém o fazia de forma muito óbvia, mas ela percebia que, de vez em quando, os olhares se dirigiam, fugidios, para o norte, onde (diziam) encontrava-se o tal buraco na cerca. Após vinte e cinco minutos, se nenhum tiro fosse escutado, a tensão parecia dissolver-se, e cada qual voltava aos seus afazeres, alguns com lágrimas nos olhos, mas felizes. Alguém murmurava: "Eles conseguiram!"

Assim, o tempo foi passando, e transformando a menina em uma linda moça. Todos os dias, ela ordenhava as cabras, cuidava do terreno em volta de sua casa, levava a refeição na cama para sua avó, ajudava a mãe nos afazeres da cozinha. Enquanto isso, o pai trabalhava na roça.

Sempre que podia, ela se sentava na mesma escadinha na porta da cozinha, mordiscando um fio de capim, e olhando as sentinelas que passavam e que eram sempre iguais.

Um dia, ela percebeu que algo estava errado. Estava sendo observada. Notou que a sentinela que caminhava do outro lado da cerca estava olhando para ela. Pela primeira vez, viu em uma das sentinelas algum traço humano. Ele tinha dois olhos. Dois olhos bem grandes. A boca que se abria em um sorriso para ela. Sem querer, a dela abriu-se em um sorriso para ele.

Assim, todos os dias, a moça passou a ansiar pelo momento de sentar-se nos degraus da porta da cozinha, e sua vida passou a ter um novo sentido. Trazia no coração um sentimento novo, que a deixava alegre, mas ao mesmo tempo, lá dentro dela, crescia também um medo fininho... porque ela sabia que, se eles continuassem se olhando daquela maneira, algo mais teria que acontecer.

Um belo dia, ela percebeu que ele tinha nas mãos um pedaço de papel. Viu quando ele o enrolou em uma pedra, e aproveitando-se da distração da sentinela que tomava conta do lado da cerca onde ela estava, jogou a pedra por cima do arame farpado. Ela esperou um momento, até que sua sentinela lhe desse as costas novamente, e como quem não quer nada, caminhou vagarosamente até o local onde estava a pedra e, bem depressa, inclinou-se e pegou -a, enfiando-a no bolso da saia rapidamente.

Do outro lado da cerca, a sentinela fingia fazer o seu trabalho de vigiar.

Ela trancou-se no banheiro da casa, abriu o bilhete enrolado na pedra e leu: "Encontre-me hoje à noite junto ao buraco da cerca."

E quando a noite caiu, ela esperou que todos na casa dormissem e, no silêncio que dominava a escuridão após o toque de recolher, ela envolveu-se em uma capa preta e foi até o buraco da cerca. Chegando lá, ela esperou. Quase meia hora depois, ela o viu aproximar-se.

Ele estava vestido com sua habitual farda de sentinela, e quando ele passou pelo buraco da cerca e a tomou nos braços, as estrelas pareceram cintilar mais forte.

Passaram a encontrar-se ali quase todas as noites, e então, iam para uma caverna ali perto, onde ficavam juntos até pouco antes do amanhecer. A vida dela passou a ter um novo sentido. Tudo o que fazia passou a ter um propósito: ordenhava as cabras com alegria, cantava, enquanto varria o terreno da casa, e até mesmo as tarefas de que menos gostava, passaram a ser mais fáceis para ela. Tudo porque estava amando.

Um dia, ela sentou-se como sempre, nos degraus da porta da cozinha, e ficou esperando por sua sentinela. Mas ele não apareceu. Nem no dia seguinte, nem depois, nem nunca mais.

As histórias corriam sempre, e eram murmuradas em segredo. Foi assim que ela ficou sabendo de uma sentinela do país vizinho que fora morta em um tiroteio, quando algumas pessoas do seu país tentavam entrar no país vizinho.

Enquanto ela definhava, a barriga lhe crescia. Passou a usar vestidos largos, e já que estava muito magra, não foi difícil esconder a gravidez até o final. Deu à luz sozinha no pasto, nas primeiras horas da manhã. Enquanto ainda sofria as dores, um grande meteoro caiu ali perto, uma  impressionante bola de fogo que cruzou os céus e foi vista por todos., deixando no solo um enorme buraco.

Após descansar um pouco, recompondo-se do susto que levara com o cair do meteoro,  a moça pegou seu bebê no colo e olhou para ele pela primeira vez. Chorou de emoção e de saudades, ao ver no rosto do menino, os mesmos olhos de sentinela fitando-a.

Embrulhou a criança em seu avental e levou-o para casa.

Até hoje, todos ainda ouvem falar na história da mulher que, durante um passeio matinal pelo pasto, viu quando um anjo desceu do céu em uma grande bola de fogo e pôs um bebê sobre o capim. Por causa deste milagre, as fronteiras entre os dois países foram finalmente abertas, e as sentinelas, dispensadas.

terça-feira, 8 de maio de 2012

À JANELA



De repente, soa um trovão distante, e começa a ventar. Logo, o trovão é seguido por outros, cada vez mais próximos, enquanto as nuvens no céu começam a tornar-se um único bloco de chumbo, e a menina, encantada, olha para as enormes folhas secas que rodopiam no ar, perseguindo-as, tentando apanhá-las antes que toquem o solo.

Na cozinha, a mãe interrompe sua lida. Lava a colher de pau que usa para mexer as panelas, batendo-a na beirada da pia para escorrer a água, pendurando-a na beirada da tampa do fogão. Chama pela menina: "Vem pra dentro! Está armando temporal!"

Mas ela finge que não ouve. Senta-se nos degraus da cozinha, enquanto a chuva começa, chegando de fininho, e depois, engrossando. Ela ouve uns estalos, e de repente percebe que pequenas bolinhas de gêlo começam a cair junto com a chuva. As bolinhas transparentes quicam no solo de terra batida, e correndo para pegar uma delas, ela toma a pedrinha na mão e leva à boca. Nisso, sente uma mão firme que a ergue pelo braço: "Endoidou, menina? Vai ficar tomando chuva,agora? Não escutou eu chamar?"

Enquanto a mãe a leva para dentro, a menina protesta: "Mas, mãe, tá nevando!" "Não é neve, é granizo! Que idéia..."

Dentro de casa, a mãe volta às suas panelas, mas não sem antes fechar a vidraça da cozinha. A menina corre para a janela do quarto, para ver a chuva cair. Neste momento, a chuva e o granizo caem tão fortes sobre o telhado de zinco, que o barulho torna-se ensurrecedor. A menina olha as pequenas enxurradas que se formam no quintal, e imagina serem rios. Um passarinho atrasado pousa num galho de pessegueiro, abre as asinhas encharcadas, sacode-se, e segue seu caminho, voando na tempestade, talvez tentando chegar à segurança do ninho.

"Mãe, vem ver a chuva!"

A mãe não resiste ao apelo, e enxugando as mãos no pano de prato, baixa o fogo das panelas e vai ficar ao lado da filha, à janela. A menina descreve a paisagem, apontando os detalhes que lhe parecem interessantes, como uma formiga que passa na enxurrada, sobre uma folha seca: "Ela pegou uma canoa, mãe!" Logo, estão conversando sobre assuntos amenos, como o dia-a-dia na escola, as coleguinhas, os professores...

Como se trata de uma chuva de verão, ela logo passa, mas deixa no céu de fim de tarde um lindo arco-íris, que a mãe aponta para a menina ver melhor: "Viu? Que bonito, um arco-íris!" "Do que eles são feitos, mãe?" Ela respira fundo, e pensa se vale a pena explicar a menina de uma maneira científica, de quê os arco-íris são feitos. Acha que ela ainda não vai entender. "Eles são feitos de luz. representam o encontro entre Deus e o homem." A menina iria lembrar-se desta explicação muitos e muitos anos mais tarde, após o enterro do pai, no momento em que, ao olhar para trás, ela viu quando um arco-íris igualzinho aquele apareceu por sobre o túmulo...

De repente, a mãe passa os braços em volta do ombro da menina, dizendo: "Você tem o poder de tornar os problemas sempre menores." Uma frase da qual ela também se lembraria, muitos anos depois...

Já começa a escurecer, e a mãe liga a TV para que a menina assista ao Festival de Desenhos, antes do jantar. Ela fecha a janela.

Do lado de fora, vê-se a casinha branca de janelas cinzentas, emoldurada pelo céu avermelhado do crepúsculo, as luzes acesas iluminando as vidraças.

A ILHA DOS DRAGÕES






Era uma vez uma ilha distante, onde todos os habitantes possuíam, como animais de estimação, um dragão. Foi assim durante muitos e muitos anos, até que a população da ilha começou a crescer, e não havia alimentos suficientes para todos os dragões – que eram animais enormes, enormes – e estes passaram a tornar-se um tanto agressivos, ferindo os aldeões, alimentando-se do gado, tocando fogo nas casas e espantando os passarinhos.



Sendo assim, foi decretado pelos governantes que os dragões deveriam ser todos eliminados sem exceções, e substituídos por lindos cães Poodle branquinhos, branquinhos. Alguns aldeões acharam crueldade aquela forma de tratar os dragões que tinham sido seus fiéis animais de estimação durante tantos anos; assim, eles decidiram separar-se dos aldeões que concordavam com a matança. Formaram-se assim dois grupos: Nós e Eles.



O primeiro grupo – Nós – era formado pelas pessoas que gostariam de manter seus dragões. Elas foram transferidas para o outro lado da ilha, que ficava a muitas centenas de quilômetros dali, e aprenderam novas técnicas para cultivar comida e criar mais animais, para poderem alimentar os seus queridos dragões; assim, reestabeleceram a paz com eles. Mantinham-nos presos nos porões dos castelos durante o dia, mas à noite, saiam voando em suas corcovas, dando-lhes, um pouco de liberdade. Deste modo, os dragões mantinham-se calmos e pacíficos, e ainda ajudavam os aldeões nas colheitas, puxando arados e carregando enormes carroças com os produtos colhidos. Ainda eram úteis fornecendo fogo nas noites de inverno, e quando bem treinados, levavam as crianças da aldeia para passear durante as épocas dos festivais de colheita.



Já no outro lado da ilha, pertencente a Eles, ou seja, ao grupo que desejava exterminar os dragões e substituí-los por Poodles branquinhos, branquinhos, algo de terrível acontecia: os dragões, percebendo que seriam eliminados, começaram a fugir e juntar-se em grupos. Passaram a atacar e matar os aldeões, formando grandes e sangrentas batalhas. As pessoas ainda tentaram uma nova tática para aplacar a fúria dos dragões: toda semana, algumas pessoas eram escolhidas para serem dadas em oferenda, a fim de saciar a sede de sangue dos dragões, alimentando-os. Estas pobres vítimas eram escolhidas conforme uma votação bastante ‘democrática:’ estavam entre os aldeões mais pobres, ou fracos, que tinham problemas físicos ou que representavam as minorias – pessoas de cor e homossexuais, por exemplo. O medo passou a imperar na aldeia, e ninguém mais era confiável! A fim de livrarem-se do sacrifício, as pessoas passaram a apontar umas para as outras, destacando defeitos que pudessem justificar seu assassínio. Imperava a política do ‘antes ele do que eu.’



Mas a pior de todas as coisas, é que os dragões, sendo animais mágicos e muito instintivos, adivinhavam quando a hora de sua morte estava chegando, e colocavam um ovo para preservar a espécie. Quando se sentiam ameaçados, podiam colocar até três ovos! Desta maneira, quanto mais dragões eram trucidados, mais dragões nasciam!



Até que um dia, um dos aldeões de Eles resolveu passar alguns dias em Nós; descobriu que em Nós, pessoas e dragões viviam em paz e harmonia, e que até ajudavam-se mutuamente! Ele voltou para casa e imediatamente contou aos governantes de Eles o que estava acontecendo no lado da ilha ocupado por Nós. Os governantes decidiram ir até lá para ver o que estava acontecendo. Após alguns dias de viagem, chegaram a Nós. Foram muito bem recebidos pelos governantes, e perguntaram:



-Não sabemos o que deu errado... após todos estes anos, vocês, povo de Nós,  conseguiram prosperar, mesmo convivendo com seus dragões, e até fizeram com que eles contribuíssem para a economia de seu país. Dragões são animais perigosos, e por isso, queríamos livrarmo-nos deles! Mas a nossa tentativa de substituí-los por cães Poodle branquinhos, branquinhos, foi um total desastre! Os dragões revoltaram-se, e passaram a fazer ataques massivos contra o povo; o povo, por sua vez, passou a odiar uns aos outros, e tornou-se crítico e acusador. Nem mesmo o sacrifício humano foi capaz de aplacar a fúria dos dragões em Eles, e mesmo após a matança ter começado, o número de dragões multiplica-se cada vez mais! A situação é caótica!



Os governantes de Nós ouviram atentamente o desesperado relato do representante de Eles. Depois, um deles tomou o centro da sala de convenções e discursou:

“Caro representante do povo de Eles: é impossível eliminarmos os dragões! Eles fazem parte de nós, de nossa história e de nosso povo. No começo, nós também cometemos o erro de confiná-los aos porões dos castelos, mas ao percebermos que quando eles escapavam tornavam-se muito violentos, iniciamos uma nova tática: demos a eles as horas noturnas como liberdade! Assim, eles dormem  nos porões ou ajudam-nos nas colheitas durante o dia, ou executam outros serviços para nós, e à noite, eles são livres!

Tentar eliminá-los é inútil, pois nascem novos dragões para cada dragão morto; tentar prendê-los é perigoso, pois ao libertarem-se – e eles sempre se libertam – sua energia reprimida torna-se perigosíssima! A melhor maneira, é aprendermos a conviver pacificamente com nossos dragões, alimentando-os, respeitando-os, dando-lhes momentos de liberdade e cuidando bem deles, mas sem deixar que eles dominem a situação.”

Após o discurso, o governante de Nós levou os governantes de Eles a um passeio pelo local, e mostrou-lhes toda a abundância, paz e beleza que existia naquela parte da ilha. Os governantes de Eles ficaram aparentemente muito agradecidos, e se foram.



Mas ao chegarem em Eles, relataram o seguinte ao seu presidente:



“A parte da ilha onde vivem Nós é riquíssima! Não conseguiria descrever em palavras a quantidade de jazidas de diamantes e minas de ouro que vimos! Impossível calcular a riqueza das plantações e fábricas! É um povo perigoso, em potencial... além disso, eles tem em suas casas e porões milhares de dragões perigosíssimos, que a qualquer momento, poderão voar para a Terra de Eles juntar-se aos que tentamos matar, aumentando ainda mais os nossos problemas. Aconselho a invasão de Nós, e a destruição de seus dragões e de todos os rebeldes que não concordarem com nossos métodos de purificação!”



Assim, a Terra de Nós, pacífica e próspera, foi invadida pelas sombras da Terra de Eles. Foi o início de um grande massacre, com direito a guerras nucleares, genocídios, santas  inquisições, domínio de uma raça sobre as outras e muito derramamento de sangue. Os dragões – todos eles – se libertaram e passaram a sobrevoar a Terra, causando grandes males que perduram até os dias de hoje.



Mas dizem que um dia, esta história terá fim. Será?




quinta-feira, 12 de abril de 2012

CARTA SOB O VASO








Quando era pequena, escrevia cartas para si mesma e colocava-as dentro de um saco plástico, sob um grande vaso que ficava na varanda de sua casa. Era um tanto difícil, para ela, levantá-lo, pois tratava-se de um vaso pesado. Plantado nele, uma miniatura de Ficus, as raízes atrofiadas tornando-o uma árvore anã. Bem, como era difícil erguer o vaso, juntava as cartas (escrevia uma por semana) e colocava-as sob o vaso apenas no final de cada mês. Aos poucos, a menina foi crescendo, e abandonando seu ritual de infância. O tempo passou, ela casou-se e mudou-se para uma nova casa. Mas o vaso ali permaneceu, na casa dos pais, até que eles faleceram e ela tornou-se herdeira da velha casa. E foi andando por ali, cheia de lembranças, que de repente ela recordou-se de suas cartas. Ergueu o vaso, coração aos pulos, sem saber se ainda estariam lá... mas... sob o vaso, apenas os ladrilhos umedecidos. Para onde teriam ido suas cartas? Para onde tinham sido levadas, e por quem ? Nunca mais soube delas, assim como também nunca mais teria de volta os momentos que vivera naquela casa.



sábado, 7 de abril de 2012

A Platéia






O ator foi afastado de seu palco, e de seu público. Levado a um pequeno teatro no interior do país, em uma cidadezinha que nem estava no mapa, toda noite ele representava para um pequeno grupo de pessoas. Não havia fotógrafos, não havia notas nos jornais, e nem fãs enfileirados à porta do camarim ao final do espetáculo. Nem mesmo havia flores!

No começo, ele sentiu muitas saudades do seu público, que o aplaudia de pé ao final de cada representação, ovacionando-o durante muito tempo e jogando-lhe flores aos pés. Ele sentiu saudades da profusão de flashes que pipocavam na platéia, dos seguranças que o ajudavam a deixar o teatro e até mesmo das críticas - favoráveis ou não - nas manhãs seguinte às das estréias.

O ator, acostumado que estava à fama, custou a habituar-se àquela pequena platéia que o assistia, em silêncio, todas as noites. Seu ego, deixado na penumbra, revoltou-se. O ator passou a beber mais que de costume, e tornou-se uma pessoa amarga.

Até que um dia, teve, em seu camarim, a visita de uma jovem. Recebeu-a com alegria, achando que, finalmente, voltara a ser devidamente apreciado. Achou que, provávelmente, a moça queria seu autógrafo, ou uma fotografia sua. Talvez até desejasse passar uma noite com ele... e ela não era nada feia! Assim, convidou-a para entrar.

A moça olhou em volta, agradecendo, e sentou-se. 

"Bem," - perguntou o ator - "Como posso ajudá-la? Deseja um autógrafo? Uma foto?"

Ela pareceu surpresa: "Não... por que eu desejaria o nome de alguém escrito em um pedaço de papel? E por que uma foto sua, se mal o conheço?"

O ator pareceu ofendido, e respondeu bruscamente:

"Ora, então, diga logo o que quer e saia, pois sou muito ocupado."

Ela respondeu: "Vim aqui dizer que sua atuação esta noite foi uma das piores que já vi! Você vem a este palco todas as noites, e parece pensar que nós não merecemos o seu melhor. Será porque somos uma platéia pequena?"

"Como assim, como você se atreve a vir aqui ofender-me? Não sabe que sou o maior ator do país? Vocês deveriam tratar-me melhor, deveriam agradecer-me por estar aqui, passando esta temporada!"

"Um ator que faz distinção entre suas platéias não merece reconhecimento. Pensa que não percebemos o pouco caso na sua atuação?"

O ator ficou perplexo. Caiu em si. Era verdade! Ele vinha dando de si bem menos do que geralmente dava ao seu público em grandes cidades, apenas porque aquelas pessoas estavam em menor número e moravam em uma cidade pequena. Ele desculpou-se com a moça, e agradecendo-lhe, prometeu que faria melhor dali em diante.

Na noite seguinte, ele representou com todo o fervor de que foi capaz. Arrancou aplausos da pequena platéia, que ao final do espetáculo, apladiu-o de pé. 

Compreendeu que não importa onde estejamos, devemos fazer o nosso melhor sempre. Não pelos aplausos - que são apenas uma consequência de um trabalho bem feito - mas em respeito ao trabalho em si. Aquilo que fazemos deve ser feito pelo ato, pela realização que nos proporciona, e não por causa das opiniões alheias a respeito do que fazemos. O prazer desfrutado durante a execução de um trabalho é o que mais importa. Pois quem não ama seu trabalho e não o executa com gratidão, alegria e dedicação, esteja aonde estiver, não merece reconhecimento.



terça-feira, 3 de abril de 2012

A ESPOSA FADA - Um conto







Um conto baseado em lendas Celtas.


Rodolfo acordou no meio da noite, e ainda parcialmente habitando os sonhos, olhou para o lado. Viu-lhe a silhueta desenhada sob as cobertas, que se erguia levemente, conforme ela respirava em seu sono tranquilo.

Uma onda de amor e paixão inundou-o. 

Lembrou-se de como a conhecera, há um ano e seis meses: 

Caminhava pela floresta após o almoço, a mesma velha floresta pela qual costumava caminhar desde os seis ou sete anos de idade (naquele tempo, escondido de seus pais, que temiam que se perdesse). Conhecia o que estaria depois de cada curva, e cada canto de pássaro. A floresta era como se fosse sua segunda mãe, pois vira-no crescer, transformar-se em um homem. Ela o protegera e o escutara em seus momentos de dificuldades, sempre respondendo às suas questões e acalmando suas ânsias como o faria uma dedicada mãe, através do sussurro do riacho, do canto dos pássaros e do beijo sibilante do vento.

Como eu já disse, Rodolfo conhecia cada curva da floresta; por isso mesmo, ficou estarrecido ao ir ter à beira de uma fonte que parecia ter aparecido do nada, no meio das árvores, onde uma linda moça banhava seus pés. Parou, encantado diante da beleza da cena:

A jovem, vestida com uma túnica branca diáfana, estava sentada na beirada do riacho, e a água que caía de uma pequena fonte fazia bolhas em volta de seus pés. Os cabelos, muito claros e longos, caíam-lhe em cascatas até a cintura, e uma grinalda de flores do campo ornava-lhe a cabeça. A pele era tão branca e delicada, que Rodolfo comparou-a aos cogumelos que cresciam em seu jardim, no meio da grama, e que ressecavam aos primeiros raios de sol.

Ela ergueu os olhos e olhou para ele como se o conhecesse. Não houve qualquer sobressalto. E ele também teve uma estranha sensação de já tê-la encontrado antes, mas em um tempo tão remoto, que apenas uma leve bruma de memória conseguia chegar até ele, e uma bruma tão leve quanto breve.

Desde então, eles passaram a encontrar-se ali todas as manhãs. E mesmo que estivesse chovendo torrencialmente, ali naquele ponto na clareira da floresta, uma nesga de sol brilhava.

Ela aceitou casar-se com ele, para seu alívio, pois Rodolfo não concebia a idéia de viver longe dela; preferiria morrer!

Mas ela impôs algumas condições:

-Ele jamais deveria fazer perguntas sobre ela; de onde viera, quem era sua família, ou que forma de vida ela era.
-Jamais deveria abrir um pequeno baú que ela guardava sempre junto a si, e nem indagar-lhe o que ele continha.
-Ela precisaria ficar algumas horas por dia totalmente só, e ele jamais poderia seguí-la, questioná-la ou espioná-la.
-Na primeira noite de lua-cheia, ela iria para a floresta. Nem foi preciso dizer que o faria sozinha, e que ele não deveria seguí-la jamais!
-Eles teriam que viver para sempre junto àquela floresta.

Recordando-se daqueles tempos, Rodolfo percebeu quando a esposa acordou, pois o rítimo de sua respiração tranquila mudou. Ele fingiu que ainda dormia, enquanto ela se levantava e, abrindo a porta do chalé, saía pela noite enluarada, a barra da camisola esvoaçando atrás de si, e ela, mergulhando na floresta escura até desaparecer.

Todas as noites de lua cheia, quando ele a via sair, sentia curiosidade em saber o que ela fazia. Encontrar-se-ia com alguém? O ciúme o dominava, mas lembrava-se da promessa feita a ela, e forçando a sua própria natureza, não a seguia. Naquela noite em especial, estava tão ansioso que decidiu ir até a pequena cozinha preparar para si um pouco de chá.

Foi quando deparou com o pequeno baú na prateleira da despensa. Uma estranha luz azulada saía pelas frestas da madeira. Imediatamente, Rodolfo começou a tremer de curiosidade, e mesmo fazendo todo o esforço que conseguia para conter sua curiosidade, acabou pegando o pequeno objeto e, ainda hesitante, abriu uma pequena fresta da tampa...

Foi o suficiente para que a luz azul escapasse, em uma explosão de raios que dominaram toda a pequena casa! Quem estivesse passando na floresta àquela hora, teria visto uma luz azul que explodia para fora do chalé, através de portas, janelas, chaminé e frestas, iluminando tudo em um raio de quilômetros!

Quando ele despertou, estava caído no chão da cozinha, e o baú, tinha desaparecido. Assim como desapareceram todo e qualquer traço da presença de sua esposa pela casa. Ele procurou pela cesta de palha que ela tecera durante a manhã; também olhou dentro das panelas, e a comida tinha desaparecido. Todas as coisas feitas por ela - cortinas lindamente confeccionadas, cestos, pequenos candelabros delicados, flores que ela colhia e nunca murchavam, enfim, tudo desaparecera. A cabana era apenas um lugar nu, gelado e sem-vida.

Ele correu para a floresta, e tentou em vão encontrar a clareira onde tinham se conhecido.
Chamou por seu nome. Chorou copiosamente, gritando ao luar o seu arrependimento. Mas ninguém respondeu-lhe. 

Quando o dia amanhecia, voltou para a casinha. Olhou-se no espelho: era um homem velho.



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