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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Lembrança de um Dia Feliz - e Outras Lembranças






Não sei por que eu fui me lembrar deste dia logo hoje, que está chovendo e faz frio. Mas de repente, ele me surgiu lá do baú das coisas perdidas, quem sabe, trazido à tona pelas gotas pesadas de chuva que caem umas sobre as outras, e que eu - enquanto esperava por meu aluno - olhava da janela. 

Era uma tarde de verão. Minha mãe tinha um irmão por parte de mãe que morava em São Paulo, de cuja existência ela só ficou sabendo depois de adulta. Ele às vezes costumava nos visitar, e quando vinha, dormia no sofá da sala, e trazia alguém com ele: uma das filhas ou sobrinhas. Eu gostava muito do Tio Eugênio. Ele fumava muito, e vivia tossindo. Toda vez que ele tossia, colocava a mão sobre o coração e respirava fundo, os olhinhos caídos, e dizia: "Meu coração vai falhar a qualquer momento..." Na verdade, ele viveu bastante, embora pudesse ter vivido bem mais se não fumasse tanto. 

Naquele dia, ele estava lá em casa. Estava sol e muito calor, e eu e minha irmã, que estávamos usando biquines, brincávamos de correr uma atrás da outra pelo quintal  levando baldes de água que jogávamos uma na outra de surpresa. Acho que eu tinha uns dez anos, se muito... não aconteceu nada de especial naquele dia. Não existe nada que eu gostaria de deixar registrado, algo que alguém tenha dito ou feito que justifique uma crônica como esta. Não existe nenhuma mensagem construtiva em nada disso. 

Minha mãe era viva, e jovem. Depois da correria e dos baldes d'água, houve um café da tarde à mesa da cozinha, preparado por ela. 

Eu me lembro dos meus pés descalços e da lama no quintal. Lembro-me do contato gelado da água em meu corpo e de minha mãe ralhando: "Vocês vão pegar um resfriado!" Lembro do Tio Eugênio encostado à parede, do lado de fora da casa, observando nossa brincadeira. Eu me lembro do sol brilhando, o céu azul, os cachorros (tínhamos muitos) correndo para tentar escapar das rebarbas da água. E minha mãe disse; "Aproveitem e reguem as plantas do canteiro para mim!" E a gente ficava na frente do canteiro, de modo que a água caísse nele quando a jogávamos uma na outra. 

Também me lembrei, enquanto escrevia, das guerras de lama, mamona e limão que fazíamos com os colegas na rua. Só bem mais tarde ficamos sabendo que mamonas eram plantas venenosas, e que os limões podem manchar a pele em contato com o sol. Mas no nosso tempo, isso não acontecia; Deus poupa as crianças, os bêbados e os loucos. Sobrevivemos ao Ki-suco - uma bebida feita de química, aromatizantes artificiais, corantes e conservantes. A língua ficava roxa ou rosa quando bebíamos, dependendo do sabor escolhido. Sobrevivemos ao açúcar, que era propagandeado na TV como sendo uma fonte de energia para as crianças. Nós comíamos doces que ficavam pegando poeira sobre o balcão do bar do 'seu' Manoel, e comíamos do pão que era embrulhado com folhas de papel de pão que ele cuspia no dedo para separar umas das outras. E nós sobrevivemos. 

Quando chovia muito, nós andávamos pela enxurrada da rua, água pelos tornozelos, e costumávamos também tomar banho numa sobra de água da antiga CAEMPE que corria bem ao lado do portão da nossa casa, em um bueiro aberto e comprido. Nunca soubemos se aquela água era limpa. Imaginem, naqueles tempos tinha tanta água em Petrópolis, que sobrava e era jogada fora.

Eu abraçava cachorros e gatos que raramente tomavam banho. Tinha galinhas, porquinhos da índia e hamsters. Brincava com besouros, joaninhas, lagartas, formigas e borboletas. Fazia bolinhos de terra. Minha vida não era lá muito higiênica, se comparada à vida das crianças de hoje, mas eu era feliz. 

Por que eu fui lembrar de tudo isso? Sei lá. Acho que estou ficando velha mesmo.




6 comentários:

  1. Não tem nada a ver com idade e sim com intensidade. Vivi muita coisa parecida, além disso, comia comida com gordura de porco, um monte de doce e nunca fui gorda, fui feliz...
    Hoje em dia as crianças tem que se preocupar com tantos modos e outras bobagens...
    Nossa, adorei Ana! Enquanto te lia também visitei algumas boas lembranças... Meu carinho.

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  2. Acho que isto é um privilégio de quem viveu e tem emoções boas para recordar. Eu as tenho e adoro. Coisa que poucos têm e poucos têm a perspicácia de confessá-las e reverenciá-las na memória.

    Beijão

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  3. Através de você também recordei tantas coisas boas! Era nossa maneira de brincar, não somos da era informatizada; brincávamos de boneca, de mocinho e bandido com a vizinhança toda, banho de mangueira e tudo que tínhamos direito numa infância muito feliz. Nossas recordações são sempre importantes, uma vez que hoje criancinhas de 1 ano estão com Smartfones, etc. e os pais babando de felicidade achando a criança um gênio. Não há mais infância. É outra coisa qualquer.
    bjs

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  4. Que doces lembranças, como é gostoso ter do que lembrar, não acredito que seja a idade, mas sim pelos momentos felizes que passou, não tem como não lembrar...
    Mas gostei mesmo foi da sua afirmação: "Deus poupa as crianças, os bêbados e os loucos."
    Amei lembrar de tantas peraltices que também fazia, adorava andar descalça, quando chovia, ia na rua pisar na corredeira de água que formava e eu tinha apenas 4 anos...
    É bom recordar, felizes dias, abraços carinhosos
    Maria Teresa

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  5. Oi Ana
    É um privilégio ter vivido a infância e você viveu. Não passou por ela como os nativos digitais de hoje que infelizmente não terão lembranças lindas como estas para recordar. E lendo você fiz uma viagem ao túnel do tempo
    Beijos

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  6. Que legal Ana, uma forma de retratar um tempo de felicidade e de liberdade de viver que tivemos o privilegio. Lembro de minha mãe gritando para eu não me constipar naquela gostosa chuva numa enxurrada que tocava minha canela.Por que protegem tanto as crianças e não lhe dão o direito de aprender com a vida?
    Bonito Ana, muito bom correr pelas linhas desta cronica.
    Bjs

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