Há muitos anos, quando eu estudava à noite, fazendo o antigo 'segundo grau' e trabalhava durante o dia em uma loja, tive um colega de escola que adorava filosofia. Ele era um tanto taciturno e sonhador, idealista, contra o capitalismo, a burguesia, o domínio das massas, e sustentava em seu discurso um tanto confuso marxista/comunista/idealista, uma vontade de mudar o mundo. Ele tinha uma alma aflita.
Certa noite, ao sairmos da escola, ele me procurou com uma porção de cadernos manuscritos, e me pediu que os guardasse. Deu-me também um casaco (até hoje não descobri o motivo), dizendo que ia fazer uma longa viagem - que, na verdade, não durou nem uma semana, e pelo que sei, ele não foi a lugar algum. Fiquei preocupada na época, achando que ele ia suicidar-se, mas após várias garantias de que ele não tinha a menor pretensão de fazê-lo (e porque o último ônibus da noite já chegava no ponto), deixei-o.
Depois, a vida nos afastou. Comecei a namorar meu marido. A escola terminou, casei-me, mudei de emprego várias vezes e não sei, absolutamente, o que aconteceu com ele. Acho que ele me pediu os cadernos de volta, e eu os devolvi, juntamente com o casaco; minha mãe adorava ler aqueles cadernos, e achava que o meu amigo, na verdade, tinha uma paixonite por mim... o que continha os cadernos? Trechos de discursos filosóficos, políticos, religiosos (ele abominava a religião). Coisas de Karl Marx, Nietzsche, Yung, Platão... antes, eu mal havia ouvido falar destes caras.
Bem, depois que minha mãe morreu, enquanto olhávamos as poucas coisas que ela deixou para decidir quem guardaria o que, achei um dos cadernos. Encapado com plástico amarelo transparente, assim que pus os olhos na capa, lembrei-me de meu antigo amigo. Achei curioso que eu tivesse me esquecido de devolver um dos cadernos! Minha mãe o guardou entre suas coisas por mais de trinta anos.
Percebi, ao folheá-lo, que havia algumas páginas que tinham sido removidas, cortadas com uma tesoura, e que o último discurso terminava repentinamente. Parece que meu amigo havia sido interrompido enquanto o copiava. E lá nas últimas páginas, após algumas folhas em branco, Havia um texto de minha mãe. Um texto que me deixou muito triste, pois falava da solidão que ela sentia e do arrependimento por ter deixado sua própria casa para ir morar com minha irmã. Falava muito de solidão e de não sentir-se adaptada. Este texto foi escrito em 1991, um ano após meu casamento.
Fiquei olhando o caderno, e pensei no trabalho que meu amigo havia tido para copiar, um a um, todos aqueles textos. Na nossa época, lá pelos anos 80, mal se ouvia falar em internet, e ninguém tinha computador em casa. Pensei nas muitas horas solitárias que aquele jovem passou perdido em seus pensamentos e anotações, e no quanto a sua cabeça devia fervilhar diante daquelas ideias tão imensas.
Pensei em toda a tristeza e solidão que minha mãe guardou só para ela durante tanto tempo... e sem que eu jamais suspeitasse de que ela se sentisse daquela maneira. Quanto desperdício!
Transcrevo aqui as últimas linhas escritas por minha mãe, pois afinal, apesar de tantas tristezas, elas provam o quanto ela gostava da vida:
"(...) Às vezes penso que a só a morte poderá me consolar, mas a vida é tão bonita, apesar dos pesares, o mundo é tão belo que ainda não quero este consolo.
Sei que tudo é ilusão, tudo acabará, nada é eterno, só Deus. Eu não quero ser uma intrusa na vida de ninguém, isso me desgosta muito. Quem sabe, se não arranjo um jeito?
E se a morte é um descanso, eu não quero descansar."
Fico me perguntando: o que faz com que nos distanciemos tanto das pessoas, e tentemos esconder nossos sentimentos e pensamentos com tanta ênfase? O que nos causa tanto medo? Por que achamos vergonhoso revelar o que sentimos e pensamos, se no fundo, todos nós temos medos e anseios tão parecidos? Por que, meu Deus, esse medo de demonstrar fragilidade, essa necessidade de competir, enganar, ser 'mais esperto' e aparentar ser e poder mais que todos, e mostrar-se sempre forte, sorridente, vencedor?
Qual é o problema em sermos apenas humanos?
Qual o problema em dizermos, sinceramente: "Hoje eu estou escuro", ou "Preciso de você", ou "Sinto-me só?" Caminhamos durante toda a nossa vida entre seres que deveriam ser encarados como nossos semelhantes, e ficamos o tempo todo tentando provar que somos bem diferentes deles. Essa solidão, esse medo, e essa tristeza, vem exatamente daí: da nossa decisão de nos negarmos a ter sentimentos reais, dessa mania de evitarmos olhar para dentro de nós mesmos, compreender o que sentimos e partilhar experiências.
Ninguém aqui é super homem! Então, para quê fingir? Por que tentar criar uma capa de falsa felicidade, um verniz que não resiste ao menor arranhão? Se todos tivéssemos coragem de retirar as máscaras, com certeza, o mundo ficaria bem mais leve. E seríamos, quem sabe, felizes de verdade.