D. Aldair era nossa vizinha de muro, ou seja, para falarmos com ela, bastava chegarmos até o muro e chamá-la. Éramos realmente muito próximos: meus pais, com seus cinco filhos, e ela e o marido, com seus seis. As idades (dos filhos, que eram tantos) regulavam umas com as outras. Ou seja, eu era amiga das duas filhas menores, minha irmã do meio dava-se bem com a filha do meio e minhas duas irmãs e meu irmão mais velhos gostavam de conversar com os filhos mais velhos dela.
Desde que eu nasci eu a tive como vizinha. Não me lembro de um dia sequer em que nós precisamos e não a encontramos. É claro, nós, crianças, tínhamos as nossas brigas. Mas logo ficava tudo bem.
Dona Aldair tinha seus agregados esporádicos. Caridosa, viva recolhendo pessoas em sua casa, que ela colocava para dormir no sótão.
O sótão era grande, escuro e empoeirado, cheio de coisas misteriosas, antigas, e também de retalhos coloridos que às vezes pegávamos para fazer vestidos de boneca (dona Aldair era costureira). Eu e minha irmã adorávamos quando ela precisava sair e pedia que minha mãe olhasse as duas meninas mais novas, pois nós íamos para a casa dela, que era a única vizinha nas redondezas que tinha um telefone naquela época, e ficávamos passando trotes e brincando de assombração.
Um dos agregados de D. Aldair foi um rapaz mudo, chamado Carlos. Ele apareceu do nada, e através de seus "Ahhs e Hãns" deu a entender que estava com fome e não tinha lugar para passar a noite. Claro, Dona Aldair acolheu-o em sua casa e deu-lhe morada no sótão. Em troca, ele varria o chão, lavava a cozinha e consertava o telhado. Nas horas vagas, Carlos lia gibis. Tinha pilhas deles.
Minha irmã logo se entendeu com ele, e conseguiu comunicar-se o suficiente (cada um do seu lado do muro) para descobrir algumas coisas interessantes; por exemplo, Carlos não tinha pai. Os dois eram da mesma idade. Os dois eram fãs do Pato Donald.
Carlos era geralmente alegre e engraçado, a não ser em uma ocasião: Roberto Carlos 'bombava' naquele tempo, e tanto minhas irmãs quanto as filhas de D. Aldair tinham muitos discos de vinil do Roberto. Toda vez que alguém tocava a música "Traumas", Carlos chorava.
Eis o que me lembro da letra, embora não tenha certeza que esteja correta, afinal, eu tinha uns seis anos naquele tempo:
"Meu pai um dia me falou
Pra que eu nunca mentisse
Mas ele também se esqueceu
De me dizer a verdade
Da realidade do mundo
Que eu ia saber
Nos traumas que a gente só sente
Depois de crescer.
Falou dos anjos que eu conheci,
Do delírio da febre que ardia
No meu pequeno corpo que sofria
Sem nada entender.
Minha mulher em certa noite
Ao ver meu sono estremecido
Falou que os pesadelos são
Algum problema adormecido.
Durante o dia a gente tenta com um sorriso disfarçar
Alguma coisa que na alma
Conseguimos sufocar.
Meu pai tentou encher de fantasia
E enfeitar as coisas que eu via
Mas aqueles anjos agora já se foram depois que cresci.
Na minha infância agora tão distante
Aqueles anjos no tempo eu perdi.
Meu pai sentia o que eu sinto agora depois que cresci.
Agora eu sei o que meu pai
Queria me esconder
às vezes as mentiras
Também ajudam a viver.
Talvez um dia pro meu filho
Eu também tenha que mentir
Pra enfeitar os caminhos
Que ele um dia vai seguir..."
Nós, cruéis como toda criança, gostávamos de cantar as primeiras estrofes, só para ver o Carlos chorar.
Um dia, Dona Aldair descobriu que Carlos não era mudo, e que fugira de casa. Seu pai não tinha morrido. Ele tinha inventado aquela estória toda, talvez para para ajudar a si mesmo a viver, como dizia a música, enfeitando seus caminhos. Quem sabe, a verdadeira estória de sua vida fosse muito mais triste...
Logo, Carlos estava tagarelando normalmente. Assim como veio, ele sumiu um dia, carregando consigo seus gibis e seus traumas, e nunca mais voltou.