Eu acho
Que o nosso cancro
Vem da vida vazia
Que vamos levando,
Da mágoa calada
No peito guardada,
Qual faca afiada
Que vai nos cortando,
Daquela palavra
Que nós não dizemos,
Da raiva aumentada
Que vai sufocando.
O nosso cancro
Vem do desencanto
De amores frustrados
Que vamos vivendo,
Das escuras ruas
Da mente e da alma
Por onde, no ontem,
Vamos nos perdendo,
Da casa fechada,
Da falta de vento,
Da dor costurada
Que nós escondemos,
Da falsa alegria
Que vamos vendendo.
Eu acho
Que o nosso cancro
Vem daquelas contas
Que nós não devemos
E vamos pagando,
Vem da gratidão
Que nós não sentimos,
Vem dos olhos cegos
Com os quais enxergamos,
Dos ouvidos surdos
Que nós educamos,
Da falta de amor
Que por nós sentimos,
De espaços vazios
Que, com qualquer coisa,
Nós vamos enchendo.
Eu acho
Que o nosso cancro
Vem das despedidas
Que não aceitamos,
Da indiferença
Que sempre fingimos
Que não percebemos,
Da injúria gritada
Sobre a nossa face,
Da maledicência
Que nós só fingimos
Que já perdoamos,
Da fome de vida
Que na nossa lida
Só vai nos matando.
O nosso cancro
É uma resposta
A todo desgosto
Que vamos fingindo
Que vamos levando,
Ao ódio e ao medo
Que nós cultivamos,
À inveja sentida
De nós, e por nós
Qual pedras agudas
No meio da estrada
Nas quais tropeçamos.
O nosso cancro
É aquele momento
No qual estancamos
E vemos que a vida
Que estamos levando
É a boca da morte
Que está salivando,
É o vento do nada
Que está nos soprando,
É aquela palavra
Que nunca dissemos,
Aquela vontade
Que não permitimos,
E aquele sonho
Que nós nem tentamos.
E vamos fingindo,
E vamos levando,
Vamos reprimindo,
Vamos disfarçando,
Vamos nos fechando,
Vamos nos calando,
Vamos só mentindo,
Vamos aceitando,
Vamos adiando,
E nem percebemos
Que somos a vida
Que estamos matando...
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