Eu |
Eu, sentada na cadeira da cozinha olhando desanimada para um prato de comida. Eu sabia que minha mãe tinha misturado abóbora amassada no feijão, e eu não gostava de abóbora. Eu era muito pequena, e me lembro que precisava de ajuda para me sentar na cadeira e também para sair dela. Me lembro de tudo: o prato de comida na minha frente, eu choramingando; minha mãe de costas para mim, indo da pia ao fogão, o rádio ligado na Rádio Difusora.
A menina da vizinha gritava: “Aninha! Vem brincar!” Meu coração dava um pulo, mas minha mãe olhava para trás: “Só depois que terminar de comer!” Era assim todos os dias.
Até que ela pegava o livrinho de histórias e colocava em cima da mesa. Ela o abria e ia mostrando as figuras, enquanto tirava a colher da minha mão e ela mesma passava a enchê-la de comida e leva-la à minha boca trancada: “Olha o aviãozinho!” Mas eu não queria saber de aviõezinhos. Eu queria o final da história, que eu já conhecia de cor.
Minha mãe ralhava: “Se quiser que eu conte, abra bem a boca e engula a comida!” Vencida, eu obedecia, e enquanto ela ia virando as páginas e contando a história, eu engolia dezenas de aviõezinhos sem perceber. De repente, ela raspava o prato vazio com a colher: “Acabou! Viu só? Agora pode ir brincar!”
E eu ia brincar, ainda com bigodes de aviõezinhos na boca, carregando fadas, castelos, reis, rainhas e princesas na imaginação.
Um dia, ela me trouxe uma cartilha: “Senta aqui. Vamos aprender a ler!” Eu tinha quatro anos e meio. Ela colocou o lápis em minha mão, segurando-a e me ajudando a cobrir as letras “A” na linha pontilhada algumas vezes. Depois, me instruiu: “A é a letra do seu nome. Agora vá cobrindo os pontinhos até terminar a página toda.” E eu gostava daquilo!
Aos cinco anos, já sabia ler e escrever muito bem. Cobrira pontinhos suficientes para chegar até a lua. Peguei o gosto pela leitura e também pela escrita, pois bem pequena, já arriscava umas histórias.
Mas eu cresci, e meu sonho de ser escritora foi se esvaindo, como a comida do prato que entrava em minha boca através dos aviõezinhos. Meus escritos foram lançados por aí, em milhares de aviõezinhos – a maioria muito pouco lidos. Mas o prazer de escrever me alimenta. Sem estes aviõezinhos, a minha alma tem fome.
Mãe |
Emocionante,Ana! Quem não viveu momentos assim diante de pratos e os aviõezinhos? Quem não os repetiu pela vida??? E teus aviõezinhos voam por aí mas sempre ,a cada dia, pousa num lugar que o aprecia, podes crer! Adorei! bjs, chica
ResponderExcluirAna Bailune também eu nunca gostei de abóbora, aliás era o que se chama um "má boca", mas a leitura não foi preciso ninguém me conduzir. Ora bolas... abóbora... o azar foi aguando mobilizado, para a guerra do Ultramar, estive adido três meses, num quartel, onde da ementa muitas vezes fazia parte sopa de abóbora.
ResponderExcluirBjs
Um texto brilhante. Adorei. Obrigada pela partilha:))
ResponderExcluirHoje:-Quero-te tanto...Quero-te, porque sim. [Poetizando e Encantando]
Bjos
Votos de um óptimo fim-de-semana.
Também tive uma mãe diferenciada assim ... Que bom ...
ResponderExcluirBoa noite, Ana. Penso que a menima que não gostava de abóbora no feijão, que bem cedo sentiu-se atraída pela leitura e que também passou a escrever, seguirá lendo e escrevendo.
ResponderExcluirUm abraço.
Ana é muito gostoso ler estas reminiscencias e ver, que a situação é mais repetitiva do que ouvir que este é um país que vai para frente. Lembro de minha infância e com este método de aviõezinhos como se fossemos hangares. Mas as historinhas, estas nos convenciam sempre.
ResponderExcluirMuito bom Ana viajar aqui.
Um abração amiga e bom domingo.
Ah! Que lembranças deliciosas! Eu amei tua narrativa. Veja a facilidade que teve para aprender , já estava na tua alma o gosto pela escrita. Os livros são filhos de tua alma. No tempo certo irão a frente, para mãos que os entendam e o apreciem. Beijos Paz e Luz
ResponderExcluirrssss, gostei muito dessa maneira de contar o seu encontro com a leitura! Uma narrativa pessoal e hilária!
ResponderExcluirComo você é parecida com sua mãe, Ana!!
Aviõezinhos ajudam sempre, seja na chantagem ou coisa qualquer, mas que comíamos, não tem dúvida. Eu fazia aviãozinho para meus filhos, e conseguia qualquer coisa! Era milagroso, o negócio...
bjs
Um texto maravilhoso. As memórias da infância são lindas e comoventes.
ResponderExcluirUma boa semana.
Um beijo.
Bom dia, Ana. Muito bom ver que a sua mãe tinha um zelo incentivador por você. Ela fazia com que tudo se cumprisse a contento.
ResponderExcluirQuanto aos "aviõezinhos" da escrita, concordo com você. Infelizmente, nos doamos,publicamos livros ou não, nos parabenizam, no entanto, parece que de algumas pessoas, diria muitas, a falta de interesse é maior.
Vejo tantas obras maravilhosas que não são prestigiadas, enquanto, ao meu ver, as que não são ou parecem em intensidade com a nossa, recebem inúmeros comentários.
De fato, não entendo este critério.
Como bem disse você, precisamos escrever para alimentar a nossa alma e não desfalecer.
Particularmente, gosto muito da sua escrita.
Tenha uma excelente semana.
Beijos na alma.
Bom dia de paz, querida amiga Ana!
ResponderExcluirComo foi bom passar por aqui e ler seu post w me ler.
A unica diferenca e que nao tinha uma mae que lesse historinhas mas eu tinha que engolir a comida sem aviaozinho... Ainda bem que meu paladar sempre foi bom, aprendeu a ser como seus avioes que eram tragados por obrigacao. E ate vinha prazer no paladar...
No mais, igual a voce entregue a leitura e nos contos de fada a fazer e refazer a vida...
Tem muita escrita boa nossa que nem sequer e lida... Tem uma coisa que estou aprendendo que e algo que chama atencao de muitos quando ha materia com possibilidade do 'circo pegar fogo' ... Leitores aos montes neste caso...
Vamos seguindo no que nos cause prazer pois nem so de leitores vive o homem.
Voce e uma excelent e escritora e isso que importa.
Tenha dias felizes!
Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem
Assim como a nossa amiga em comum, a Tais, também achei você parecida com sua mãe!
ResponderExcluir"Aviõezinhos", muitas mães usam desse artifício para incentivar os filhos a comerem, não sei se isso é bom ou ruim?!
Que bom poder recordar a infância, eu amo isso, minha mãe era e sempre foi ( até mesmo depois de 29 anos de sua morte) minha inspiração e aprendi a ler e escrever mais cedo, por adorar isso, acho que todas as pessoas que escrevem, mesmo que não haja quem as leem, mas escrevem pelo grande prazer de nossas almas!
Eu gosto de te ler!
Abraços querida amiga!