E então, aquele que tinha vindo para revelar a sombra dos que reinavam, mostrando a eles mesmos o seu grau de corrupção, foi capturado.
Como pudera ele atrever-se a derrubar o templo seguro das verdades que há séculos norteavam existências? Como pode ele ter tido a coragem de desafiar seus dogmas e preceitos há tanto estabelecidos e jamais questionados? E aqueles a quem ele chamava de discípulos não passavam de gente simples do povo, gente sem representatividade que, não mais que de repente, eram premiados com a missão de espalhar a Palavra que ele desencavara dos confins dos corações humanos! E que dizia ser a Palavra Divina! Mas eles tinham a palavra Divina, e apenas eles!
Mas a multidão oprimida, com suas almas sedentas e ressecadas, seguia o mestre e seus discípulos a todos os lugares, e sentavam-se para ouvir suas histórias. Eles prometiam um mundo melhor, onde a repressão e a dor teriam fim. Bastava que para isso, eles o seguissem e cumprissem o novo dogma. Bastava que desistissem das ilusões aflitivas e tribulações daquele contexto de mundo cansado e repressor no qual estavam inseridos. Mas haveria ranger de dentes até que toda aquela paz pudesse ser alcançada! Haveria morte e perseguição, mas desta vez, por um ideal maior que eles mesmos. Ora, já não eram mortos e perseguidos em favor dos que estavam no poder e lhes usurpavam as almas? Desta vez, a perseguição sofrida seria por uma causa maior: a salvação da humanidade!
E muitos acreditaram nele. Muitos o seguiram, bebendo suas palavras e assimilando as novas verdades. Assim, ele tornou-se perigoso, pois proclamara-se um novo rei, com promessas de um novo reino de vida eterna a seus seguidores, que em muito ultrapassava as expectativas daquele povo e as capacidades dos antigos governantes e líderes espirituais.
Ele tinha que ser calado. Enviaram-lhe o Rei das Trevas, com promessas de ouro, prata e poder sobre toda a humanidade. No deserto de sua própria sede e de seu próprio medo, ele foi tentado. Só mesmo o seu próprio coração pode reconhecer a dificuldade que ele teve ao dizer ‘não’ a todas aquelas ofertas! Mas ele conseguiu, e atravessou seu próprio deserto, agora consciente da própria sombra que carregava, fruto de sua própria luz.
Como ele não havia cedido, a única alternativa que lhes restava, era eliminá-lo. Para isso, procuraram o mais fraco de seus discípulos – o mais ambicioso – e o convenceram-no a traí-lo; mas disseram que não se tratava de traição, e que tudo seria para o próprio bem de seu mestre, e que nenhum mal lhe seria feito. Tudo o que ele precisava para ser novamente libertado, era negar suas convicções errôneas e deixar de colocar ideias malucas na cabeça do povo. Que mal poderia dar-se daquela atitude? E não seria traição, já que o discípulo só estaria contribuindo para que seu mestre permanecesse vivo e fisicamente íntegro!
Assim, com um beijo, a história foi selada.
O mestre foi conduzido a um tribunal, onde as autoridades não quiseram responsabilizar-se pelo seu destino. A decisão seria do povo – seus seguidores. Levaram-no diante deles, junto com Barrabás, o Ladrão, e disseram ao povo que eles deveriam decidir quem morreria e quem viveria.
A multidão calou-se por um instante, indecisa diante da sombra e da luz. Pela primeira vez, estavam diante de dois espelhos, mas em apenas um deles, reconheceriam a sua imagem.
Lembraram-se dos muitos anos durante os quais a luz de poucos projetara sombras escuras sobre a sua existência. Mas, por outro lado, lembraram-se das promessas de luz eterna e conhecimento,feitas pelo mestre que os ensinara, sentado sobre as colinas, e das tardes maravilhosas que haviam desfrutado juntos. Mas também se lembraram de que ele mesmo dissera que, para que a luz fosse feita, e para que a paz fosse alcançada, muitos deveriam morrer. E mil dúvidas vieram Às suas mentes: será que existia mesmo, a vida espiritual prometida? Tudo o que conheciam, era aquela vida carnal, urgente, incontestável, feita de dores e prazeres.
Por fim, concluíram que, se a vida espiritual realmente existisse, que mal fariam, se enviassem seu mestre até ela? Não deveria ele precedê-los, e guardar seus lugares junto ao Pai maior?
A decisão que tomaram foi assim justificada; mas o que eles não perceberam, era que matar o ladrão seria o mesmo que matar algo importante em todos eles, pois Barrabás era o receptáculo de suas sombras! Durante suas vidas, eles tinham aprendido a lidar melhor com a sombra do que com a luz. Não estavam prontos para abrir mão de seu lado mais obscuro, trazendo-o à luz do conhecimento. A salvação teria que esperar por mais alguns séculos, até a humanidade pudesse reconhecer a sua sombra e lidar com ela adequadamente, trazendo-a à luz.
Mal sabiam eles que tinham feito a escolha certa, nada mais, nada menos do que exatamente o que o mestre esperava que eles fizessem, pois a luz foi devolvida a uma dimensão à qual não os cegava, e eles podiam procurá-la e olhar para ela sem correrem o risco de se tornarem cegos por seu brilho. Bastava-lhes saber que ela existia.
E a promessa, feita pelo mestre, de muitas dores e provações até que pudessem alcançá-la e olhá-la de frente, até hoje é cumprida na face da terra.