Ontem, sem que eu puxasse por elas, as memórias começaram a aflorar. Isto tem acontecido comigo muitas vezes: de repente, sem que eu esteja tentando lembrar-me de alguma coisa, e às vezes até quando estou muito ocupada, alguns fatos do passado - coisa de trinta, quarenta anos atrás - voltam a mim. Fico surpresa, pois há séculos eu já nem me lembrava delas.
Lembrei-me dos natais na casa no apartamento de meu cunhado e de minha irmã; a árvore de natal enorme, até o teto, cheia de enfeites e luzes, e os muitos presentes - todos lindamente embalados - sob ela. Nós, em nossas melhores roupas, brindando em lindas taças de vinho - coisa que para mim, criança, era simplesmente inusitado. Lembrei-me de um natal no qual eu ganhei de presente duas batas indianas (era meu maior desejo ter uma daquelas batas que, na época, eram importadas e caríssimas), um relógio de pulso (o primeiro de minha vida) e um par de sandálias. Lembrei-me do quanto os natais eram movimentados e celebrados naquela época. Alguns de nós ainda nem sequer sonhavam em nascer... hoje, alguns de nós já se foram: meu pai, meu sobrinho...
Flashes de vários acontecimentos ( nenhum deles grandioso ou especial, mas corriqueiros ) há muito esquecidos, voltam à memória. Por que será? Fico me perguntando de onde vem tanta coisa. E vem nos momentos mais inusitados : quando estou dando uma aula, andando na rua, limpando a casa.
Lembrei-me dos sábados que passávamos (toda a minha família) em um sítio de conhecidos no Vale dos Esquilos. Lá havia um grande campo de futebol, onde os homens passavam a tarde, inclusive, meu pai, jogando bola. O lugar era lindíssimo, entre montanhas cobertas de árvores e cheias de quedas d'água. Na parte de cima, havia um pomar de pessegueiros que, quando floridos, eram um espetáculo dos mais lindos. Havia também, naquele sítio, uma piscina de água natural cheia de aranhas... eu morria de medo de entrar nela, enquanto as outras crianças diziam: "Vem, Ana, elas estão lá do outro lado!" E havia churrascos, bolos de aniversário, e à noite, as temidas (por mim) sessões de umbanda.
Durante uma delas, um Preto Velho parou diante de mim (eu tinha uma dor no ombro crônica, que não passava nunca, há muito tempo), e sem que eu ou qualquer pessoa tivesse dito nada sobre a minha dor, ele soltou uma baforada de fumaça de cachimbo em meu rosto, dizendo: "Zinfia tem encosto!" Eu gelei de medo, e ele, dando-me uns passes, livrou-me da dor, e acredito, dos encostos... acho que eu tinha uns oito, nove anos.
Lembrei-me das tardes em que eu ia para a loja do meu cunhado e da minha irmã, uma loja de roupas masculinas finas, 'de etiqueta,' e na hora do lanche, íamos comer mistos quentes e bana-split no Fukas'. Eu ajudava a fazer os enfeites de natal para a loja, e adorava quando, tarde da noite, portas fechadas, eu podia ficar olhando os funcionários fazerem a decoração de natal das vitrines. Durante o dia, brincava na 'máquina de escrever,' e acompanhava as idas aos bancos. Era tão pequena, que meu cunhado me segurava na rua apoiando a mão por trás de meu pescoço.
Lembro-me das viagens à Cabo Frio, quando ficávamos hospedados no Edifício Areia Branca. Meu pai, minha mãe, minhas irmãs, meu cunhado, eu... meus sobrinhos nem existiam.
Lembro quando a Cristiane nasceu. Depois, a Dani, e o Thiago. A gente ria muito quando meu cunhado dava comida para as crianças, pois enquanto ele levava a colher às bocas, não sabemos o motivo, ele torcia a própria boca. Era engraçado vê-lo fazendo aquilo.
E finalmente, lembro-me de meu cunhado nas manhãs de domingo, sentado de shorts em sua poltrona preferida, lendo jornal e tomando uma dose de uísque ou Campari - até hoje não entendo como alguém pode gostar de Campari! Na vitrola, Paul Mauriat , Clara Nunes ou Richard Clayderman. Bem, eram as músicas que ele gostava... e até que Richard Clayderman não é tão ruim.
Para José Luiz - resgatando memórias felizes.