EPIGRAMA
Adoro Cecília Meireles. Ela foi a primeira poeta que li por livre e espontânea vontade, sem ter sido por imposição dos professores de Língua Portuguesa e Literatura. Ainda era criança, e eu a conheci ao passar por uma banca de livros usados, no calçadão das Lojas Americanas ("point" famoso entre os jovens naquela época). O livro era "Olhinhos de Gato." Já li e reli aquele livro tantas vezes... e nunca me cansei dele. A poesia e a prosa de Cecília Meireles falam ao coração de quem as lê de maneira suave e eficaz. Hoje, ainda tenho aquele livro, e mais alguns que adquiri ao longo da vida.
Eu sempre ficava intrigada com os vários poemas de Cecília cujos títulos eram "Epigrama." O dicionário define:
O vocábulo epigrama era de uso comum no latim clássico (de onde foi absorvido pelo português), mas apresenta etimologia grega. Compõe-se do prefixo epi, que neste caso quer dizer em cima de, sobre, acoplado ao elemento de composição grama , que aqui tem o sentido de sinal ortográfico, inscrição, glosa, adendo, anotação. Epigrama, pois, quer significar qualquer mensagem gravada em cima de alguma obra ou objeto (vasos ornamentais, monumentos, esculturas, lápides, muros, livros, paredes, tumbas etc.), em forma de grafitagem caligrafada, inscrições, epitáfios, dedicatórias ou identificação de produção artística. Na literatura, representa o gênero poético criado na Grécia e popularizado em Roma, consistente em poesias curtas (alguns poucos versos ou estrofes) de conteúdo concentrado e incisivo, de fácil memorização e agradável leitura, geralmente marcadas pelo humor satírico mordaz ou zombeteiro, crítica social, maledicência pessoal, malícia picante ou duplo sentido. São idéias, pensamentos, máximas, mexericos, intrigas ou anedotas redigidos em formatação poética de escala textual reduzida e alta densidade de conteúdo com desfecho impactante (similar à chave de ouro dos sonetos). Em português há o coletivo acantologia (coleção ou antologia de epigramas).
Alguns exemplos de epigramas poéticos: 1) O caminho por onde se sobe / é o mesmo por onde se desce (Heráclito) 2) O doutor Saracura / a curar começara; / mas enquanto ele cura / o doente não sara (Pe. Correa de Almeida).3) Sou político e me arranjo / no ninho da cobra-cega. / Parte de mim soca o anjo / que a outra parte carrega (José Argemiro); 4) ?Ai, Maria! Vem depressa, / desaperta este culote! / Eu me sufoco, ai que temo / estourar como um foguete! / - Nanhanhãzinha está tão bela! / Mas, enfim, dá tantos ais ... / - Oh, espera! Estou bonita? / Pois, então, aperta mais. (Joaquim Manoel de Macedo).
Eis aqui um deles, de Cecília Meireles:
Epigrama n. 12
A engrenagem trincou pobre e pequeno inseto
E a hora certa bateu, grande e exata, em seguida.
Mas o toque daquele alto e imenso relógio
dependia daquela exígua e obscura vida?
Ou percebeu sequer, enquanto o som vibrava,
que ela ficava ali, calada mas partida?
E também:
Epigrama n.10
A minha vida se resume
desconhecida e transitória,
em contornar teu pensamento.
sem levar dessa trajetória
nem esse prêmio de perfume
que as flores concedem ao vento.
Enfim; Cecília, com toda a sua elegância e sabedoria, construía lindos epigramas.
Mas um de meus poemas favoritos dela, é "Criança." Forte, pungente. Já o transcrevi em uma de minhas páginas. Também aprecio demais este, que não é um epigrama, pois que é longo demais, mas encerra o mesmo tom irônico e sarcástico dos epigramas:
Gargalhada
Homem vulgar! Homem de coração mesquinho!
Eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
O ritmo e o som da minha gargalhada:
Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!
Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármore baixelas de ouro,
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...
O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.
Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
-e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas, Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas...
Escuta bem:
Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!
Só de três lugares nasceu hoje esta música heróica:
Do céu que venta,
Do mar que dança,
e de mim.
Belíssimo, não?
Uma outra característica da poesia de Cecília Meireles, é o verso livre, solto, sem a preocupação obsessiva com métricas e rimas. Alguns deles, são quase prosas poéticas. Como em Taverna, que colocarei aqui em um pequeno trecho:
Bem sei que, olhando pra minha cara,
pra minha boca triste e incoerente,
pros gestos vagos de sombra incerta
que hoje sou eu,
minha loucura se faz tão clara,
minha desgraça, tão evidente,
minha alma, tão descoberta,
que pensam: "Este, não bebeu..." (...)
Maravilhosa!