Manual do Messias:
"A sua consciência é a medida da honestidade de seu egoísmo. Escute-a com cuidado."
........................................................................
-Somos todos livres para fazermos o que quisermos fazer- disse ele, naquela noite.- Isso não é simples, limpo e claro? Não é uma bela maneira de se dirigir o Universo?
-Quase. Você se esqueceu de uma parte importante-repliquei.
-Ah, é?
-Somos todos livres para fazermos o que quisermos, contanto que não prejudiquemos os outros-ralhei.- Sei que você quer dizer isso, mas deve dizer o que quer dizer.
Ouvimos um ruído de arrastar de pés no escuro, e olhei depressa para ele.
-Ouviu isso?
-Ouvi. Parece que é alguém...
Levantou-se e foi andando pelo escuro. De repente riu, e disse um nome que não entendi.
-Está certo - eu o ouvi dizer. -Não, teremos prazer em sua companhia... não precisa ficar aí de pé... venha, seja bem vindo, mesmo.
A voz tinha um sotaque forte, não era propriamente russo, nem tcheco, parecia mais da Transilvânia.
O homem que trouxe consigo para junto do fogo era... bem, uma figura invulgar para se encontrar no Meio-Oeste, de noite. Um sujeitinho pequeno, magro, com cara de lobo, de aspecto assustador, vestido a rigor, uma capa preta forrada de cetim vermelho, que estava incomodado com a luz.
-Estava passando - disse ele. - O campo é um atalho para minha casa.
-É mesmo?
Shimoda não estava acreditando no homem, sabia que ele estava mentindo, e ao mesmo tempo, se esforçava ao máximo para não dar uma gargalhada. Eu esperava poder compreender dentro em pouco.
-Esteja à vontade - disse eu. - Poemos ajudá-lo em alguma coisa?
Não me sentia assim tão disposto a ajudá-lo, mas era tão tímido, que queria pô-lo à vontade, se conseguisse.
Olhou-me com um sorriso desesperador, que me fez gelar.
-Sim, pode me ajudar. Preciso muito disso, caso contrário, não pediria. Posso beber seu sangue? Só um pouco? É o meu alimento, preciso de sangue humano...
Talvez fosse o sotaque, mas não entendi suas palavras; pus-me de pé o mais rápido possível, o capim voando para dentro do fogo, com a minha rapidez.
O homem recuou. Em geral, sou inofensivo, mas não sou pequeno, e posso parecer ameaçador. Ele virou a cabeça para o outro lado.
-Senhor, sinto muito, sinto muito! Desculpe. Por favor, esqueça o que eu disse sobre o sangue! mas sabe...
-O que está dizendo? -Eu estava ainda mais feroz por estar amedrontado. -Que diabo está dizendo, homem? Não sei o que você é, mas é alguma espécie de VAM...?
Shimoda me interrompeu antes que pudesse completar a palavra.
-Richard, o nosso convidado estava falando e você o interrompeu. Por favor, continue, senhor; o meu amigo é um pouco apressado.
-Donald, este camarada...
-Fique quieto!
Aquilo me surpreendeu tanto que fiquei quieto, e olhei com uma espécie de indagação apavorada para o homem, que agora se parecia bastante, de fato, com um vampiro humano, atraído do escuro pelo nosso fogo.
-Por favor, compreendam. Não fui eu que escolhi nascer vampiro. Não tenho muitos amigos. Mas preciso de certa quantidade de sangue fresco toda noite, senão me contorço com dores terríveis. Se passar mais tempo sem ele, morro! Por favor, ficarei muito mal, morrerei, se não me permitir sugar o seu sangue... uma pequena quantidade, preciso apenas de meio litro.
Deu um passo em minha direção, lambendo os lábios, achando que de algum modo Shimoda me controlava e faria com que eu me submetesse.
-Mais um passo e haverá sangue, sim. Moço, se me tocar, morrerá!
Não teria matado, mas queria pelo menos detê-lo até termos conversado mais.
Deve ter acreditado em mim, pois parou e suspirou. Virou-se para Shimoda.
-Já conseguiu o que queria?
-Acho que sim. Obrigado.
O lobisomem me olhou e sorriu, completamente à vontade, divertindo-se imensamente, como um ator em um palco após a peça.
-Não beberei o seu sangue, Richard - disse então, num inglês perfeito e com simpatia, sem qualquer sotaque. Enquanto olhava para ele, foi sumindo, como se estivesse apagando sua própria luz... em cinco segundos, desapareceu.
Shimoda tornou a sentar-se junto ao fogo.
-Como estou contente que você não fale a sério!
Ainda estava tremendo, da adrenalina, pronto para a minha luta contra o monstro.
-Don, não sei bem se fui feito para isso. Talvez seja bom você me contar o que está acontecendo. Como, por exemplo, o que... era aquilo?
-Dot era um vampiro da Transilvânia - disse ele, em tom mais estranho do que o do lobisomem. - Ou, para ser mais preciso, Dot era a forma de pensamento de um vampiro da Transilvânia. Se algum dia você quiser explicar alguma coisa, e achar que a pessoa não está escutando, arranje uma formazinha de pensamento para demonstrar o que quer dizer. Acha que exagerei, com a capa, os dentes e aquele sotaque? Estava muito apavorante para você?
-A capa foi de primeira, Don. Mas foi o mais estereotipado, bárbaro... não fiquei nada apavorado.
Ele suspirou.
-Ah, bem. Pelo menos, você entendeu o que eu queria dizer, e é isso que interessa.
-O que era?
-Richard, ao demonstrar-se tão feroz contra o meu vampiro, você estava fazendo o que queria fazer, mesmo sabendo que iria prejudicar outra pessoa. Ele chegou a lhe dizer que passaria mal se...
-Queria sugar o meu sangue!
-É isso que fazemos com qualquer pessoa quando dizemos que passaremos mal se não viverem do nosso jeito!
Fiquei calado muito tempo, pensando. Sempre achara que somos livres para fazer o que quisermos, desde que não nos façamos mal mutuamente, e isso não condizia com o que acontecera. Faltava alguma coisa.
-O que me intriga - disse ele - é uma frase feita que, na verdade, é impraticável. A questão é fazer mal aos outros. Nós mesmos escolhemos se vamos ser feridos ou não, aconteça o que acontecer. Somos nos que resolvemos, e mais ninguém. O meu vampiro lhe disse que passaria mal se você não aceitasse? Isso foi a decisão dele de ser ferido, foi a sua escolha. O que você faz a respeito é a sua decisão, a sua escolha: dá-lhe o sangue; amarra-o; enfia-lhe um galho de azevinho no coração. Se ele não quiser o galho de azevinho, tem liberdade de resistir, do jeito que desejar. E isso continua indefinidamente, escolhas e mais escolhas.
-Pensando assim...
-Escute - disse ele - é importante. Somos todos livres, para fazer. O que quisermos. Para fazer.
Do livro "Ilusões - As Aventuras de um Messias Indeciso!", por Richard Bach
Richard Bach - 23/06/1936 - é um escritor de nacionalidade estadunidense. A principal ocupação de Bach foi como piloto reserva da Força Aérea e praticamente todos os seus livros envolvem o voo de certa maneira.