A mão da justiça não deve ser leve nem pesada demais. Em ambos os casos, sendo demasiadamente leve ou pesada, ela torna-se complacente com o crime - aquilo que deveria combater. É muito difícil pesar a justiça, e tomá-la nas próprias mãos é a maneira mais rápida e fácil de desvirtuá-la.
Todo mundo tem uma pedra guardada na manga do casaco, e não vê a hora de jogá-la contra alguém. Vivemos tempos violentos, onde pensar tornou-se esforço demais, e as pessoas se deixam levar por boatos sem nenhuma base ou critério, elegendo líderes cretinos e aproveitadores. Basta que alguém tenha a voz mais alta ou o discurso mais floreado e aponte um caminho qualquer, e logo uma turba enfurecida e acéfala o seguirá, sem pensar e sem pesar os fatos, tal qual uma manada de celerados.
Por isso, eu temo os líderes e seus 'movimentos.' Movimento demais causa tonturas. Quem muito grita, pouco tem a dizer, e quer ganhar a razão através da voz, e não através dos fatos. Quem sai por aí quebrando coisas em nome da justiça não poderia estar mais longe dela.
Assim, seguimos transformando a atmosfera e a energia deste país em algo cada vez mais pesado e poluído, e nem paramos para pensar na espécie de lugar que deixaremos às gerações futuras; o que mais importa, é atirar as pedras que temos nas nossas mangas como uma maneira de aliviar nossas frustrações e desabafar a nossa voluntária ignorância.
E cada vez mais, aquele espaço tão precioso, onde tudo começa, onde estão guardadas as sementes para um mundo melhor, permanece ignorado: as nossas próprias calçadas.
Ainda agorinha fui até a cozinha preparar o café, e vi que o pote de pó estava vazio. Fui lá fora e peguei mais um pacote na despensa, e ao colocar o pó que estava no pacote dentro do pote, esqueci-me de retirar a colher dosadora, que fica sempre lá dentro.
Após um momento de autocensura, sem pensar duas vezes, enfiei a mão no pó de café, a fim de pegar a colher dosadora, e a sensação que tive foi nova e surpreendente.
Você já enfiou a mão dentro de um pote de café, mexendo os dedos bem devagar, acariciando o pó e sentindo o aroma maravilhoso que ele exala? E ao retirar a mão, o cheirinho fica na pele... adorei.
Lin Yutang - Uma reflexões sobre trechos de seu livro A Importância de Viver"-
publicado em Julho de 1937
"Quando um homem cria uma civilização própria, mete-se numa corrente de desenvolvimento que, pelo aspecto biológico, seria capaz de aterrorizar ao próprio Criador. No tocante a adaptação à natureza, todas as criaturas são maravilhosamente perfeitas, porque a natureza mata as que não de adaptam perfeitamente. Mas agora já não se nos exige que nos adaptemos à natureza; cumpre que nos adaptemos a nós mesmos, a isto que se chama civilização. Todos os instintos eram bons, eram sãos na natureza, mas na sociedade, chamamos selvagens aos instintos. Todo rato rouba- e ele não é menos moral ou mais imoral pelo fato de roubar -, todo cão ladra, todo gato se escapa de noite e estraçalha tudo aquilo em que põe as garras, todo leão mata, todo cavalo foge ao ver o perigo, toda tartaruga dorme durante as melhores horas do dia, e todo inseto, réptil, ave e besta reproduz a sua espécie em público. Bem, mas em linguagem civilizada, todo rato é ladrão, todo cachorro faz demasiado barulho, todo gato é um esposo infiel, quando não é um vândalo selvagem, todo leão ou tigre é um assassino, todo cavalo, um covarde, toda tartaruga é uma preguiçosa e, finalmente, todo inseto, ave, réptil, ave ou besta é obsceno quando cumpre as suas naturais funções vitais. Que transformação na massa dos valores! E esta é a razão pela qual nos quedamos a assuntar, espantados, por que nos teria feito Deus tão imperfeitos."
Segundo este trecho, que li e reli várias vezes, Lin Yutang discursa sobre o qaunto nos distanciamos de nossa própria natureza. Aquilo que era natural e nos ajudava a sobreviver, hoje é considerado pecaminoso, imoral ou pelo menos, desaconselhável. Acredito que chegamos a um ponto sem retorno; já criamos nossas regras para conviver em sociedade, e devemos seguí-las se quisermos evitar sérios conflitos com as outras pessoas, que também a elas, em sua maioria, adaptaram-se. Hoje, é inaceitável que nos reproduzamos em público ou que ajamos como os ratos, que roubam, e como os felinos, que destroem tudo no qual deitam suas garras - embora muitos ainda hajam desta maneira.
Mas acho que existem alguns instintos básicos que perdemos, e que seria muito interessante se pudéssemos resgatar; antigamente, as pessoas que trabalhavam nos campos tinham um incrível sincronismo com os rítmos da natureza. Plantavam e colhiam nas épocas certas, sabiam quando era melhor cortar os cabelos (segundo as fases da lua), entendiam os humores das marés sem que necessitassem de instrumentos muito poderosos. Elas viajavam guiando-se pelas estrelas, e raramente se ouvia falar de alguém que se perdera. Infelizmente, hoje nos tornamos dependentes da tecnologia para estes e outros fins. E quanto mais deixamos de usar os nossos instintos, mais os perdemos.
Tornamo-nos seres racionais e frios, e tratamos de apagar ou socar para o fundo qualquer tentativa de escutarmos os nossos instintos, pois isto significaria ser chamado de louco, irresponsável ou inconsequente. Aquela voz fininha que falava aos nossos ancestrais, hoje não passa de um murmúrio quase inaudível. Saímos por aí agindo 'racionalmente', e por isso damos racionais cabeçadas.
E cada vez mais, nos achamos no direito de criar regras aos outros. Quem se adapta a elas é considerado 'esperto', racional, inteligente, sociável; quem não concorda com elas, é anti-social, execrável, estúpido e digno de isolamento. E vamos matando nossos instintos, e assim, nossas almas vão se tornando pálidos espectros que vagam acima do mundo e acima de nós mesmos, desconectadas de nós, vítimas de depressão, sentimentos de inadequação, medo, preconceitos, urgência em agradar e ser aceito por aqueles que 'ditam as regras.'
Lin Yutang falava contra o nazismo em uma época na qual o Nazismo dominava grande parte da Europa; ele confrontava valores há muito estabelecidos, apontava novos caminhos e trilhas de pensamento, em uma época na qual judeus eram queimados em fornos da mesma maneira que hoje assamos frangos em microondas. Usando de seu inabalável senso de humor e coragem - e até mesmo, uma ponta de ironia - desnudava o verdadeiro caráter dos líderes de sua época, em trechos como:
"Perdoamos os grandes do mundo porque morreram. Por estarem mortos, sentimos que ficamos igualados a eles. Todo cortejo fúnebre carrega um estandarte em que estão escritas as palavras: "Igualdade Humana. (...) Vem daí, pois, o senso da comédia humana e o próprio material da poesia e da filosofia. Quem percebe a morte adquire o senso da comédia humana e logo se torna poeta."
E ainda:
"A diferença entre os canibais e o homem civilizado é, parece-me, que os canibais matam seus inimigos e os comem, ao passo que os civilizados matam seus inimigos e os enterram, plantam uma cruz sobre seus cadáveres e mandam rezar missas por suas almas." Lembrei-me muito de Ayrton Senna e toda perseguição que sofreu, quando li este trecho. Revi a cena do documentário sobre sua vida, onde um Prost compungido carrega uma das alças de seu caixão.
E em seu discurso sobre o senso de humor:
"(...) os capazes, os hábeis e os ambiciosos e orgulhosos são ao mesmo tempo os mais covardes e confusos, pois carecem da coragem, profundeza e sutileza dos humoristas. Estão sempre dedicados a trivialidades, ao passo que os humoristas, com seu maior descortino de espírito, podem pensar em coisas maiores. Conforme andam as coisas,, um diplomata que não fala cochichando, nem parece muito assustado e composto e cauteloso, não é um diplomata... Mas nem é preciso reunir uma conferência de humoristas internacionais para salvar o mundo. Em todos nós há uma suficiente qauntidade deste desejável ingrediente que se chama senso de humor.
(...) Afinal, só o que maneja levemente suas ideias é senhor de suas ideias, e só o que é senhor de suas ideias não se vê escravizado por elas. A seriedade, enfim, é apenas um sinal de esforço, e o esforço é um sinal de imperfeita maestria. Um escritor sério sente-se pesado e a contragosto no reino das ideias, como um novo-rico na sociedade. É sério porque não chegou a sentir-se a gosto na companhia de suas ideias.
(...) Quando vemos um escritor a lutar com suas ideias, podemos estar certos de que as suas ideias é que estão lutando com ele."
Assim, seguindo as ideias de Lin Yutang, por que não levarmos a vida de maneira mais leve e despreocupada? Por que continuarmos fazendo questão de parecer o que não somos? Ninguém é perfeito, ninguém tem a chave da porta do Céu (ou do inferno), e ninguém tem o poder de destinar os outros a este céu (ou inferno) que concebemos.