Sonhei que examinava velhas fotos de família. Enquanto ia abrindo as páginas do álbum, os acontecimentos ali retratados tomavam vida e ganhavam movimento. Vi fotos de uma festa de São João na casa de minha irmã. Meus sobrinhos ainda eram pequenos, meu cunhado tinha cabelo e a Tia Rosa estava viva. Até meu pai aparecia em uma das fotos...
Vi fotos de uma menina tímida, que acreditava que seus sonhos eram impossíveis. Ela nunca acreditaria, se alguém, naquela época, lesse seu futuro e dissesse como seria sua vida hoje. Não sou mais aquela menina magrela, insegura, complexada. Na foto, ela anda entre as pessoas, tentando não aparecer muito, não querendo incomodar.
Vi pessoas que um dia fizeram parte de nossas vidas, mas que hoje desapareceram completamente em algum lugar no infinito tempo. Eu já não pensava nelas há séculos. Algumas viveram entre nós por um período muito curto, mas deixaram marcas profundas; outras, ficaram mais tempo, deixando marcas profundas ou não. Algumas ainda, ficaram por um período tão breve que nem sequer me lembro de seus nomes. Mas todas estiveram conosco um dia.
Vi minha mãe bem mais jovem. Minhas irmãs. Meu irmão. Vi cães e gatos que tivemos.
Acho que sei o motivo deste sonho:
Sábado. Andávamos pela Rua l6 de Março após o almoço, conversando animadamente e planejando o resto do nosso dia. A rua estava movimentada e alegre. Eu estava contente, pois tinha acabado de comprar um casaco que vinha namorando há duas semanas, e estava de mãos dadas com meu marido, a pessoa que mais amo no mundo. O céu encoberto, uma leve brisa soprando. Quase frio. Para mim, um dia perfeito.
Foi quando o vi.
Após a reforma do Centro Histórico de Petrópolis, colocaram banquinhos de madeira ao longo das calçadas. Ele estava sentado em um deles. Sujo, totalmente envelhecido, o olhar perdido em algum lugar bem longe dali, fixo nos pés das pessoas que passavam na calçada. Estava só. Eu ainda vinha longe, quando o avistei. Achei seu rosto familiar, mas não consegui identificá-lo de imediato. Ainda estávamos longe um do outro, quando ele ergueu a cabeça e nossos olhares se cruzaram. Rapidamente, ele desviou os olhos . MAs eu continuei olhando para ele. Mas ainda não tinha certeza...
Voltei no tempo há uns vinte e cinco anos atrás. Lembrei-me de nossa adolescência, ele em nossa casa ouvindo música, nós dançando no som do Serrano F.C., andando pelas avenidas de Petrópolis e aprontando todas. Lembrei-me de uma linda casa no Quarteirão Brasileiro onde ele morava. Lembrei-me que um dia eu até tivera uma quedinha por ele, e por isso, minha carteira da escola era toda desenhada com carinhas do Cebolinha, personagem de Maurício de Souza, pois esse era o apelido dele. Isso, antes dele começar a namorar minha irmã. Então ele se tornou, durante algum tempo, quase um membro da família.
Viajamos juntos para Cabo Frio uma vez, junto com toda a minha família; ele e minha irmã já namoravam. Foi uma época muito divertida.
Todas estas lembranças vieram à minha cabeça como um relâmpago. Apertei a mão de meu marido. Seria ele? Eu não estaria confundindo? Aquela pessoa velha, extremamente magra , que vestia roupas sujas e surradas seria mesmo ele, aquele jovem engraçadíssimo, cheio de vida e com todas as oportunidades pela frente?
Nisso, eu já estava passando quase em frente ao banco onde ele estava sentado. Meu marido também o olhou. Ele ergueu os olhos novamente, mas eu ainda não tinha certeza. Até que ele murmurou um "oi" constrangido. Quase forçado. Reparei que lhe restavam poucos dentes. Respondi com um outro "oi" ainda incerto.
Era ele! Compreendi isso quando já estava a alguns passos adiante. falei com meu marido sobre o que tinha acontecido, meu coração pulando em minha garganta. Ele respondeu: "Mas aquele homem é um mendigo! Você tem certeza?"
Sim, eu tinha. Era ele, era o Cebolinha.
Um personagem do meu passado. Senti-me péssima por não ter feito nada, mas o que eu poderia ter feito?
Lembrei-me da última vez que o encontrara, ali na 16 de Março, há mais ou menos quinze anos. Ele estava bem, e carregava um menino no colo. Seu filho. Mandou lembranças para todos lá em casa. Não, não poderia ser a mesma pessoa. Mas era!
Ele não queria que eu o tivesse visto. Notei que se sentia muito constrangido. No que será que ele pensou quando me viu?
Será que eu deveria ter parado, perguntado a ele o que tinha acontecido, se ele precisava de alguma coisa? Ele teria apreciado isso? Não sei... mas tive a impressão que ele não queria que eu falasse com ele, tanto que desviou os olhos quando me viu pela primeira vez. Na verdade, não sei se errei ou acertei. Se minha atitude foi covarde ou sensível.
Acho que por isso, tive esse estranho sonho. Resgatei alguns personagens do meu passado, muitos dos quais já tinha me esquecido. Acho que isso faz parte do amadurecer.
A vida dá voltas. Isso é um cliché, mas é a mais pura verdade. Como seria, se soubéssemos , com certeza, no que nos transformaríamos daqui a alguns anos? Eu sou outra pessoa, ele é outra pessoa, você também é. Mas vê-lo fez com que eu me desse conta disso. Foi como um tratamento de choque, uma coisa que a vida queria que eu percebesse mas não estava conseguindo fazer com que eu enxergasse. E quando não enxergamos o que a vida quer nos mostrar, ela o esfrega em nossa cara.
A vida é um susto. A vida é imprevisível. A vida é uma surpresa, e deve ser vivida como tal. Se não tomarmos cuidado...