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terça-feira, 15 de setembro de 2020

O ‘BUTIQUIM’ DO SEU ‘MANEL’

 

 


Na verdade, bar era chamado de boteco, mas a gente dizia ‘butiquim.’ ‘Seu’ Manel, que se chamava Manoel, era um português de meia-idade casado com a Dona Dulce, uma senhora também portuguesa. Me lembro que eles tinham um filho que se chamava Antônio, mas ele não ficava muito por lá.


O butiquim do ‘seu’ Manel ficava próximo à minha casa, mas nem tão pertinho assim, e eu tremia nas bases sempre que ouvia a voz da minha mãe: “Ana! Vai lá no butiquim buscar...” Eu ficava possessa, pois tinha que interromper minhas brincadeiras, descer as escadas de casa, às vezes, debaixo de sol,  ir no tal butiquim, comprar o que ela precisava e fazer todo o caminho de volta... e muitas vezes, encontrava a minha mãe de pé no caminho, uma nota enroladinha na palma da mão: “Esqueci de comprar açúcar. Volta lá.” Ser criança não era mole...


O que era incrível no butiquim do seu Manel eram os doces. Lembram daqueles doces de bar? Paçoca, beijinho de coco, bananika (um doce amarelo com formato de banana e feito de marshmellow do qual só eu me lembro), geleia de copinho comestível, suspiro, sorvete quente, chocolate Behring, chocolate Batom... às vezes, a gente abria as embalagens do chocolate e eles estavam com teias de aranha. Minha mãe mandava: “Vão lá no butiquim trocar essa porcaria. Está estragado!” Eu morria de vergonha... ‘seu’ Manel olhava o chocolate, encolhia os ombros e dizia: “Como assim, está estragado??? Basta retirar a teia e comer!” E era o que eu fazia.


O pior momento da minha vida, era quando minhas irmãs mais velhas menstruavam de repente – tenho a impressão de que elas não faziam a menor ideia sobre o ciclo menstrual delas – e eu tinha que ir até o butiquim do ‘seu’ Manel para comprar absorvente para elas. Eu morria de vergonha. Comprar absorvente era um tabu! Na farmácia, por exemplo, a gente tentava ser atendida por uma balconista mulher. Mas no butiquim do ‘Seu’ Manel não tínhamos muitas opções, a não ser a Dona Dulce... quando o bar estava cheio, eu ficava por ali, fingindo que estava olhando a vitrine de doces. ‘Seu’ Manel logo vinha: “Vai querer um doce?” Eu balançava a cabeça e mentia: “Ainda estou escolhendo...” Eu olhava por cima do balcão esperando ver a Dona Dulce, e quando ela finalmente aparecia, eu erguia as sobrancelhas; era como um código: ela ia lá para dentro e vinha com um embrulhinho quadrado em papel cor-de-rosa – o pacote de absorvente. Não satisfeita, pois teria que andar pela rua carregando aquilo, eu pedia: “Dona Dulce, dá para botar num saquinho?” Ela vinha com um dos saquinhos plásticos que tinha trazido do supermercado e que reutilizava no bar. Às vezes, ela dizia: “Da próxima vez, traz uma bolsa de casa.”


Algumas vezes eu voltava para casa com as mãos abanando, e minha irmã ralhava: “Cadê o Modess???” Eu explicava: “O butiquim estava muito cheio de homens. Não deu para pedir!”


No butiquim do ‘Seu’ Manel tinha uma mesa de sinuca. Os homens ficavam por ali, bebendo cachaça e cerveja, fumando e jogando. Quando eu já era mocinha, eu detestava ir lá, pois alguns deles me comiam com os olhos, e outros chegavam a fazer piadinhas. Naqueles tempos, homem era homem, como minha mãe costumava dizer, e a gente tinha que ficar o mais longe possível deles. Alguns deles gostavam de levar alguns instrumentos para o butiquim – cuíca, tamborim, cavaquinho, – e ficavam tocando e cantando samba. Eu também odiava aquilo. A gente mal conseguia fazer o pedido!


Mas se tem uma coisa da qual eu não me esqueço nunca, é do ‘seu’ Manoel embrulhando o pão: ele deixava uma porção de folhas de papel de pão cortadinhas sobre o balcão em uma pilha. Quando a gente pedia: “Duas bisnagas,” ele pegava o pão com a mão que tinha passado não-sei-onde, e para descolar as folhas de papel de pão umas das outras, dava uma cuspidinha entre o indicador e o polegar. Depois, com aquela folha de dedos cuspidos, embrulhava o pão.


A gente comia chocolate com teia de aranha e doces que ficavam expostos sobre o balcão onde se debruçava todo tipo de gente; a gente comia pão que tinha sido embrulhado na folha de papel cuspida, e refrigerante no gargalo da garrafa que, antes de ir para a geladeira, tinha ficado armazenada em caixotes no fundo do bar, onde passeavam ratos e baratas. Está mofado? Passa a mão que sai! Caiu no chão? Assopra e come! A gente tomava Kisuco cheio de anilina e conservante, todos os dias na hora do almoço, e sobrevivemos àquilo tudo.


 Se o Coronavírus tivesse chegado naqueles tempos, ia encontrar muita resistência entre os frequentadores do butiquim do ‘seu’ Manel, sem sombra de dúvida.






10 comentários:

  1. Que cronica gostosa Ana, acho que todos nós temos estas lembranças, pois criança tinha esta obrigação de ir até a vendinha comprar as coisas para casa. A minha era Sr Ormindo e longe de casa numa ladeira. Adorava o doce de abobora em formato de coração e as paçocas e os picolés naquela forma parecendo tabuleiro. Na mesma rua tinha os butequins onde comprava Grapette quando tinha uma moeda.Mas neles o pai sempre dizia para nao entrar por causa da cachaça que rolava e para não ouvir e aprender palavrão,rsrs.
    Belas lembranças Ana e viajei aqui na minha infância de cidadezinha de interior.Uma coisa lembro Ana, das peças de bacalhau sobre o balcão e a gente sempre puxava uma lasca, naquela época anos 60, pobre comia muito bacalhau.
    Gostei amiga.
    Abraços cm boas lembranças.

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    1. Oi, Toninho! Hoje em dia, bacalhau é coisa de rico, hahaha! Apesar de tudo, bons tempos... a gente se divertia...

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  2. Delicia te ler.Leve, cheia de realidades...Me vi na cena do Modess... Era mesmo assim... Como eram bons armazéns assim...ADOREI! BEIJOS, LINDO DIA! CHICA

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  3. Boa noite de muita paz, querida amiga Ana!
    Da vendinha eu me lembro bem que meu pai comprava bala de graselha para eu chupar na merenda. Era em frente à escola e entrava com ele.
    Nunca entrei num boteco, acredita?
    Muito bom ler sua crônica.
    Tenha dias abençoados!
    Bjm carinhoso e fraterno

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    1. Que pena, Rosélia! Você escreve bem e te renderia muitas crônicas!

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    2. Boa tarde, querida!
      Confesso que fiquei feliz até porque você nunca me disse algo assim e eu acreditei agora.
      Atrevi a me estender nos blogs e livros pelos comentários afinados de vocês.
      Fiquei emocionada uma vez mais, pois sua opinião é de se levar em conta, indubidavelmente.
      Como gratidão de coração , vou fazer uma sobre a balinha mais amada que existiu no mundo até hoje para mim.
      Avisar-lhe-ei o link.
      Muito obrigada pelo seu carinho incentivador.
      Bjm de gratidão

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    3. https://espiritual-amizade.blogspot.com/2020/10/eu-ja-fui-crianca-um-dia.html

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