Gostaria de deixar claro de que este texto não se trata de uma resenha, mas de uma reflexão. Contém spoilers.
Quando eu era criança – oito anos de idade, para ser mais precisa – meu avô por parte de mãe faleceu. Ele tinha 71 anos, e deixou-nos um pequeno legado de livros, mas infelizmente, a maioria deles foi relegada a uma enorme fogueira em um dia fatídico no qual minha mãe precisou sair e minha irmã adolescente decidiu fazer uma faxina na casa. Entre os livros, havia uma coleção completa de Henry Durville, “A Sciência Secreta” (Com ‘sc’ porque era assim que se escrevia ‘ciência’ na época), edição 1929, um livro sobre Rosa Cruz, outros sobre espiritismo e um livro de bolso – um romance de ficção científica, com o título Ave Marciana, de Edmund Cooper, edição de 1967. Dos livros acima citados, apenas este último e três fascículos da coleção de Henry Durville foram salvos da Inquisição literária promovida por minha irmã, pois minha mãe chegou em casa antes que a toda a sentença fosse executada.
Eu peguei no chão o livro Ave Marciana, e limpando da capa a fuligem, fui para um canto e comecei a lê-lo. Acho que eu tinha 9 anos. Não consegui tirar os olhos do livro. A história era sobre seres humanos que, partindo da Terra em 2025, foram parar em um planeta distante após 26 anos de viagem nos quais permaneceram em suspensão a maior parte do tempo. Sendo assim, não envelheceram. Foram parar em Altair 5, um planeta onde a vida estava saindo do estado primitivo, e as pessoas ainda demonstravam certa selvageria, executando sacrifícios humanos para aplacar Aru-re, o seu deus sedento de sangue. Dos que chegaram ao planeta, apenas um sobreviveu: Paul Marlowe, ou Por-me-lo, como ficou sendo chamado pelos habitantes do planeta. E ele sobreviveu justamente por sua decisão de tentar compreender os hábitos locais, adaptando-se a eles, sem julgá-los ou tentar modificá-los, por saber que a população não estaria preparada para tal.
Ao terminar o livro, com um nó na garganta, pois muita coisa ali fazia um sentido enorme para mim (sentido esse que eu não sabia expicar aos nove anos de idade), apenas alguns meses depois eu o reli. E acho que o reli ainda mais algumas vezes, pois reler um livro onde seus personagens preferidos morrem no final, faz com que eles temporariamente ressuscitem. É como rever velhos amigos.
Quando me casei, minha mãe tinha ido morar com minha irmã, e outra leva de livros foi queimada na transição – entre eles, Ave Marciana e meus velhos amigos que moravam nele. Passei anos da minha vida tentando encontrar outra edição do livro sem obter sucesso, até que recentemente digitei Edmund Cooper no Google e consegui achar sua edição em inglês, intitulada A Far Sunset. Baixei a versão e-book na Amazon.
É incrível o quanto a gente redescobre coisas velhas e descobre coisas novas ao reler um livro após muitos anos, e após muitas mudanças na nossa capacidade cognitiva e na nossa vida pessoal. Ave Marciana estava ali, com todos os seus personagens, e nuances importantes que eu não tinha notado nas primeiras leituras. Os personagens pareciam mais fortes e coesos, e me falavam de forma bem mais eloquente. Foi emocionante o encontro de Paul Marlowe, ou Pol-mer-lo, com a nave mãe do planeta Marte, que telepaticamente contou a ele as origens de todos os povos do Universo, inclusive a humana, e a conexão entre todos eles. Uma nave que mantinha contato com outras naves, escondidas em outros planetas, onde as civilizações que lá chegaram eram mais ou menos evoluídas, ou tinham sido extintas. A nave contou a ele que as questões que as pessoas tinham sobre quem tinha quatro dedos ou cinco dedos nas mãos tiveram origem há centenas de anos, em um tempo onde absolutamente todos tinham cinco dedos nas mãos.
A nave telepática era Aru-re - Deus. Era ela que determinava tudo o que acontecia na superfície de Altair 5. Era com ela que os seres vivos se comunicavam, achando que o faziam com um ser transcendental. Ela era a origem das sementes que se espalharam no Universo para tentar salvar o que restara da civilização marciana após a destruição da vida no planeta Marte.
O final da história, apesar de tê-la lido tantas vezes, foi surpreendente, pois na época em que li pelas primeiras vezes, não entendi a motivação de Paulo Marlowe em permanecer no planeta, mesmo após ter tido a única chance de retornar à Terra, e mesmo sabendo que tendo se tornado rei daquele povo, representante direto do deus Aru-re, seria sacrificado para que outro rei pudesse surgir, e Aru-re, renascer nele, como mandava a tradição. Desta vez, compreendi os motivos de Pol Mer-lo e a morte de Paul Marlowe.
Ainda vou reler “A Far Sunset.” Este livro me levou de volta a lembranças da minha infância, meu avô, minha família, a casa onde morávamos, cenas de minha vida que eu já tinha perdido. Ele reacendeu em mim a inocência daquela época, e também mostrou que um bom livro será sempre um bom livro, não importa quantas vezes alguém o tenha lido, e sempre mostrará algo novo que o leitor não tinha percebido na leitura anterior.
EDMUND COOPER