domingo, 6 de novembro de 2016
segunda-feira, 31 de outubro de 2016
O CÃO SEM PLUMAS
O Cão Sem Plumas
(João Cabral de Melo Neto)
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
Minha Casa
A minha casa é meio-Frida Kahlo:
As cores se misturam e se espalham
Aleatoriamente nas paredes,
Em verdes e azuis, roxos, laranjas,
Em brancos, amarelos e vermelhos.
Cortinas não tem forros; esvoaçam
Ao vento que adentra e as agita,
E espalha o cheiro doce do incenso
Que eu queimo pela casa todo dia.
A minha casa é simples, e aqui dentro
Somente os objetos que amamos:
Presentes e lembranças de viagens,
E coisas que gostamos e compramos.
Por sobre a escadaria de madeira,
As mãos dos marceneiros já idosos...
A maioria deles já se foi,
Deixaram suas presenças no meu chão.
Sob esta escadaria, hoje estão
Os livros que mais amo, e que não doo;
De vez em quando os leio, e então me entrego
A branda realidade dos seus voos.
O meu jardim é uma parafernália
De plantas que eu encontro pela rua,
E ao plantá-las, raramente brotam
Onde eu as plantei, mas onde querem.
E Burle Marx, acho, se revira
Na tumba onde dorme, ao contemplá-lo!
Pois nada nesse canto é ordenado,
E nada obedece seus espaços!
Cresce uma pitangueira no canteiro,
As rosas se debruçam sobre o muro
E escolhem enfeitar outros jardins;
O meu bonsai cresceu trinta centímetros,
O cedro se encheu de passarinhos
Que fazem os seus ninhos por ali;
Me acordam de manhã, sempre bem cedo.
Pelo gramado, há falhas onde a grama
Foi arrancada pelas patas ávidas
Dos meus cachorros; ele se divertem
Ao derraparem sobre as folhas verdes.
Na minha casa nada é muito certo:
Eu desafio o rígido bom gosto
E rio das suas leis – desobedeço
O que já foi determinado e posto.
quinta-feira, 27 de outubro de 2016
Vá Comprar Uma Laranja!
Cheguei ao ponto de ônibus perto da minha casa, e encontrei novamente aquele senhorzinho, também esperando pelo raro evento de um transporte de passageiros aqui na minha rua – o que só acontece a cada uma hora. Nos cumprimentamos, como sempre, e ele começou a puxar assunto. Não sei por que, mas as pessoas geralmente puxam assunto comigo – mesmo eu tendo essa cara não muito amigável.
Começamos a conversar sobre os problemas de água em Petrópolis e nas dezenas de condomínios de luxo que estão construindo em Itaipava, Corrêas, Nogueira e outros locais. Nos perguntávamos se haverá água para toda essa gente, se já está começando a faltar para nós. Falamos também das chuvas que estão rareando cada vez mais. Falamos do aumento de temperatura dos últimos anos.
De repente, ele apontou para a ladeirinha que conduz à minha rua, e perguntou: “Você mora ali?” eu disse que sim, e ele me perguntou se eu tinha conhecido um senhor que morava ali e que morreu recentemente. Respondi: “Sim, ele era meu vizinho. Morava quase em frente à minha casa!” E ele começou a enumerar algumas pessoas que ele conhecia, e que tinham morrido. Lamentamos por eles.
Não entendo por que lamentamos pelos que já morreram, se não sabemos o que há do outro lado, que pode até ser bem melhor do que o que temos aqui, ou então, se não há absolutamente nada, é aí que eu acho que deveríamos lamentar menos ainda. Mas a gente diz de quem morreu: “Coitado! Que descanse em paz!” Como se estarmos vivos fosse alguma espécie de presente, e a morte, uma desgraça. Estar vivo é vencer, e morrer, é perder. Será?
Bem, mas meu amigo e eu continuamos a nossa conversa, e de repente, ele começou a dizer algo, e uma vozinha lá de cima sussurrou em meu ouvido: “Escute com atenção, sua idiota. Isso é pra você!” Ele disse: “É... ninguém pode prever esse tipo de coisa... a morte, você sabe. Eu, toda vez que tenho vontade de comer uma laranja, por exemplo, eu vou lá fora, compro uma e como, porque a qualquer momento, a gente está aqui e de repente... dá um estalo no coração e a gente vai embora.”
E eu pensei nas laranjas que ainda não comprei. Pensei em todas as laranjas que tanta gente deixa de comprar, por medo, preguiça, vontade de economizar, ou simplesmente porque acha que hoje não é um bom dia, porque está chovendo. E muitas dessas laranjas ficam para trás nas estradas das nossas vidas, apodrecendo inutilmente, e a nossa vontade de prová-las, que não foi jamais saciada, será a fome que sofreremos antes do nosso último suspiro.
quarta-feira, 26 de outubro de 2016
Minha Casa
A minha casa é meio-Frida Kahlo:
As cores se misturam e se espalham
Aleatoriamente nas paredes,
Em verdes e azuis, roxos, laranjas,
Em brancos, amarelos e vermelhos.
Cortinas não tem forros; esvoaçam
Ao vento que adentra e as agita,
E espalha o cheiro doce do incenso
Que eu queimo pela casa todo dia.
A minha casa é simples, e aqui dentro
Somente os objetos que amamos:
Presentes e lembranças de viagens,
E coisas que gostamos e compramos.
Por sobre a escadaria de madeira,
As mãos dos marceneiros já idosos...
A maioria deles já se foi,
Deixaram suas presenças no meu chão.
Sob esta escadaria, hoje estão
Os livros que mais amo, e que não doo;
De vez em quando os leio, e então me entrego
A branda realidade dos seus voos.
O meu jardim é uma parafernália
De plantas que eu encontro pela rua,
E ao plantá-las, raramente brotam
Onde eu as plantei, mas onde querem.
E Burle Marx, acho, se revira
Na tumba onde dorme, ao contemplá-lo!
Pois nada nesse canto é ordenado,
E nada obedece seus espaços!
Cresce uma pitangueira no canteiro,
As rosas se debruçam sobre o muro
E escolhem enfeitar outros jardins;
O meu bonsai cresceu trinta centímetros,
O cedro se encheu de passarinhos
Que fazem os seus ninhos por ali;
Me acordam de manhã, sempre bem cedo.
Pelo gramado, há falhas onde a grama
Foi arrancada pelas patas ávidas
Dos meus cachorros; ele se divertem
Ao derraparem sobre as folhas verdes.
Na minha casa nada é muito certo:
Eu desafio o rígido bom gosto
E rio das suas leis – desobedeço
O que já foi determinado e posto.
terça-feira, 25 de outubro de 2016
Poupando a Alma
A gente vê uma formiguinha se afogando em uma poça; nossa primeira reação, se tivermos alguma solidariedade pelas outras criaturas, será salvá-la. E olhamos em volta a procura de um galhinho ou de uma folha que possamos usar para resgatar a formiga de uma morte terrível por afogamento, mas não achamos nada, e ela continua a debater-se no meio da poça. É urgente que algo seja feito, ou ela morrerá em poucos segundos. Sem hesitar, mergulhamos o dedo na água e a resgatamos.
O que poderá acontecer então? Esperamos que a formiga nos agradeça, ou demonstre respeito por nós devido a nossa atitude? Se esperamos que haja, da parte de uma formiga, qualquer tipo de reconhecimento, é porque somos insensatos. O máximo que poderemos conseguir, caso não sejamos espertos o suficiente para colocá-la no chão o mais rapidamente possível, é uma ferroada. Porque uma formiga sempre agirá conforme a sua natureza, aferroando tudo que ela considere uma ameaça. É típico das formigas agirem desta forma.
O mesmo acontece em relação a alguns seres humanos que, após receberem a nossa ajuda, nos retribuem com a ingratidão, ou pior ainda, com a indiferença. É da natureza deles que hajam desta forma.
Porém, não é por isso que devemos permanecer ao seu redor, convivendo com sua indiferença ou levando ferroadas e amortecendo pontapés. Temos uma escolha: podemos sair de perto de pessoas assim. Podemos escolher poupar as nossas almas desta convivência onde um é o doador e o outro apenas recebe.
Muitos dizem que, ao darmos alguma coisa, não devemos esperar nenhuma recompensa, mas recompensa, neste caso, não é bem a palavra; quem doa, quem ajuda, quem resgata, espera que pelo menos não sofra a ingratidão da indiferença, e que aqueles a quem ajudou, não se voltem contra eles sem motivo algum.
Acho que existe uma má interpretação das palavras que Cristo disse quando nos estimulou a oferecer a outra face. Oferecer a outra face é resgatar a formiga da poça d'água, mesmo sabendo que poderemos ser aferroados, mas não é deixar o dedo disponível para a formiga picar. É ajudar a quem precisa, mesmo que tenhamos sido magoados por esta pessoa, mas sem permitir que voltemos a ser magoados.
Poupemos as nossas almas das convivências infrutíferas. Perdoemos, mas não continuemos nos expondo a relacionamentos dos quais só podemos esperar sofrimento, ingratidão e injustiça. procuremos nos relacionar com aquelas pessoas que realmente demonstram gostar de nós, da nossa presença, e que nos respeitam e admiram.
segunda-feira, 24 de outubro de 2016
Há
Há os que chegam em silêncio,
Deitam os olhos sobre tudo
E saem sem nada dizer,
Sem nada sentir,
Sem nada trazer.
Há os que chegam de repente,
E trazem facas entre os dentes;
Ferem sorrindo,
Dão gargalhadas,
Saem contentes.
Há os que chegam sem querer,
São empurrados pela vida,
Trazem sementes,
Partilham almas,
Saem mais sábios.
Há os que chegam por escolha,
Bem conscientes,
Preces nos lábios,
Dentro do peito
Um “Obrigado.”
Vem todos pela mesma estrada,
Seguindo sempre as mesmas trilhas,
Trazidos pelos mesmos ventos...
Mas cada um vem diferente,
E cada um vai diferente.
A Farter
A farter
Is frequently someone
Who thinks they should not refrain
Their natural physiological need
(Not even hiding their traces)
Until they find another one
Who farts in their faces.
ORLANDO
Trechos de Orlando, de Virginia Wolf
"Entre a felicidade e a melancolia não medeia espessura maior que a de uma lâmina de faca. "
"Enquanto a fama tolhe e constrange, a obscuridade envolve o homem como um nevoeira; a obscuridade permite que o espírito siga o seu destino, desimpedido."
"Nada, porém, pode ser mais arrogante, embora nada seja mais comum, do que assentar que de deuses só existe um, e de religiões nenhuma outra senão a de quem fala."
“A memória é a costureira, e uma costureira caprichosa. A memória faz a agulha correr para dentro e para fora, para cima e para baixo, para lá e para cá. Não sabemos o que vem a seguir ou o que virá depois. Assim, o movimento mais comum do mundo, como o de sentar-se à mesa e puxar o tinteiro, pode agitar mil fragmentos díspares e desconexos, ora brilhantes, ora embaçados, pendendo, flutuando, mergulhando, tremulando, como a roupa branca de uma família de 14 pessoas numa corda ao vento.”
“Ele descrevia, como todos os jovens descrevem, a natureza, e de modo a comparar o tom do verde precisamente com o que observava (e aqui ele mostrava mais audácia que muitos) a coisa em si-mesma, que acontecia ser uma moita de loureiro a crescer sob a janela. Claro que depois de tudo isso ele não poderia escrever mais. O verde na natureza é uma coisa, o verde na literatura era outra. Natureza e literatura parecem ter uma natural antipatia: aproxime ambas e elas se despedaçam. O tom de verde que Orlando viu agora viciava sua rima e desfazia sua métrica. No mais, a natureza tem seus próprios truques.”
"Procurei a felicidade muitos anos e não a encontrei; procurei a fama e perdi-a; o amor, não o conheci; a vida - e eis que a morte é melhor. Conheci muitos homens e muitas mulheres", continuou, " não entendi nenhum. É melhor que fique aqui em paz, só com o céu por cima de mim."
Virginia Wolf |
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