Trechos do livro Passeio ao Farol, de Virginia Woolf
-"Nunca alguém pareceu tão triste.Amarga e escura,a meio caminho nas trevas,sob o feixe de luz que fugia do sol para encerrar-se nas profundezas,talvez uma lágrima se tenha formado;e uma lágrima caiu;as águas agitaram-se de um lado para o outro e receberam-na,depois acalmaram-se.Nunca alguém pareceu tão triste."(...)Sua simplicidade penetrava no que as pessoas hábeis falsificavam."
"...Era preciso achar um meio de escapar a tudo aquilo. Devia haver uma forma mais simples, menos complicada, suspirou ela. Quando se olhou no espelho, viu os cabelos grisalhos, a face abatida, aos cinqüenta anos, e pensou: poderia ter conduzido melhor as coisas - seu marido, o dinheiro, os livros dele. Mas nunca se arrependeria de suas decisões, nunca fugiria das dificuldades ou se eximiria de suas obrigações. Irradiava dignidade nesse momento, e só com um rápido alçar de olhos do prato diante de si, após o silêncio que se seguiu às suas palavras sobre Charles Tansley, é que as filhas - Prue, Nancy e Rose - ousaram deleitar-se com a ideia do que imaginavam ser uma vida diferente da que tinham: talvez mais emocionante, possivelmente em Paris, sem ter de se precaver contra este ou aquele homem. Havia no pensamento de todas elas uma indizível curiosidade em relação a coisas tão diversas como cavalheirismo, o Banco da Inglaterra e o Império das índias, dedos repletos de anéis e rendas. Havia nisso, para todas elas, um pouco da essência da beleza, que enchia seus jovens corações de anseios pela masculinidade, e as fazia, enquanto se sentavam à mesa sob os olhos da mãe, respeitar a extrema severidade e cortesia com que as advertira sobre o desprezível ateu que as tinha perseguido na Ilha de Skye, ou - falando mais precisamente - fora convidado para ficar com elas. Tal advertência fora feita com a mesma dignidade com que uma rainha tiraria da lama o pé imundo de um mendigo para lavá-lo."
"Então com a casa vazia e as portas trancadas e as tapeçarias enroladas, estas brisas sem rumos, postos avançados de grandes exércitos, urgiam, roçavam em tábuas desnudas, roídas e ventiladas, nada encontravam em quartos ou salas que completamente resistiam a elas [as brisas] mas apenas cortinas que vibravam, madeira que rachava, as pernas desnudas das mesas, panelas e porcelanas já forradas, sem cor, rachadas. Que as pessoas tinham abandonado – um par de sapatos, um chapéu de caça, algumas saias desbotadas e casacos nos armários – esses sozinhos mantinham a forma humana e no vazio indicavam como certa vez eles foram preenchidos e animados; como certa vez mãos foram ocupadas com colchetes e botões; como certa vez o espelho tinha refletido uma face; tinha mantido um mundo esvaziado no qual uma figura voltava, uma mão acenava, a porta abria, através da qual entravam crianças correndo e tropeçando; e a saírem de novo. Agora, dia após dia, a luz voltava, tal uma flor refletida na água, sua aguda imagem na parede oposta. Apenas as sombras das árvores, florescendo no vento, prestavam obediência à parede, e por um momento escureciam a piscina na qual a luz se refletia; ou aves, voando, faziam uma suave mancha oscilar lentamente através do chão do quarto.
Parecia que nada poderia romper esta imagem, corromper esta inocência, ou perturbar o oscilante manto do silêncio no qual, semana após semana, no cômodo vazio, ondulavam o piar cadente das aves, o apitar de navios, o zumbir e o zunir dos campos, um latido de cão, um grito de homem, e envolvia-os ao redor a casa em silêncio. Uma vez apenas uma tábua se soltava no terraço; uma vez, no meio da noite com um estrondo, com um êxtase, como se após séculos de consenso, uma rocha se desprendesse da montanha e ressoasse irrompendo no vale, numa prega do xale a soltar-se e oscilar pra lá e pra cá. Então novamente a paz desceu; e a sombra ondulou; a luz se inclinou a sua própria imagem em adoração na parede do quarto; e a Sra. McNab, rompendo o véu de silêncio com as mãos que seguravam no balde, rangendo com botas que tinham esmagado o cascalho, veio direto para abrir todas as janelas, e tirar a poeira dos quartos."
"Mas, o que é uma noite afinal? Um curto intervalo de tempo, principalmente
quando a escuridão se desvanece tão cedo, e tão rápido, um galo canta, um
pássaro o chilreia, ou o verde demasiado se aviva no seio da onda, como
uma folha na primavera. Mas uma noite se sucede à outra. O inverno
encerra em grande quantidade, e as distribui imparcialmente equanimente,
com seus dedos infatigáveis. Elas se prolongam; elas escurecem. Algumas
guardam nas alturas límpidos planetas – discos de claridade.
(...) As noites agora estão cheias de vento e de destruição; as árvores
precipitam-se e se curvam e suas folhas voam desordenadamente até o
gramado ficar eivado delas: e elas se amontoam nos bueiro, entopem as
calhas e aderem a lugares úmidos. Também o mar fica revolto e se quebra,
e, fosse alguém, imerso no próprio sono, imaginar que poderia encontrar
uma resposta para suas dúvidas, ou alguém que compartilhassem de sua
solidão, e, afastando as cobertas descesse para andar na areia – nenhuma
imagem com aparência servil e divina presteza viria em seu apoio para dar
um sentido à noite e fazer o mundo refletir a amplitude da alma. Desvanece
a mão na sua mão; a voz branda em seus ouvidos. Poderia parecer quase
inútil perguntar à noite, em meio a tal confusa, o quê? e por quê? e para
onde? – perguntas que lavam a pessoa adormecida a deixar o leito e buscar
uma resposta."
A escritora Virginia Woolf evoca desde logo a essência da tragédia. Sentindo-se incapaz de controlar a vida, preferiu a morte, afogando-se num rio com os bolsos repletos de pedras. E no entanto, aparentemente, ela desfrutava das condições que considerava essenciais para uma mulher se afirmar como escritora, advogadas no seu ensaio “Um Quarto que seja Seu” – dispor de espaço, físico e psicológico e de dinheiro suficiente para se bastar a si própria. Inserindo-se na impressionante cadeia de mulheres inglesas, nascidas a partir de 1800, que produziram literatura, a obra desta escritora é sempre classificada como sendo das mais inovadoras e estimulantes, quer entre as mulheres autoras, quer entre o conjunto dos criadores de ambos os sexos. Reconhecida em vida, apoiada pelo seu marido, igualmente escritor, Leonard Woolf, Virginia produziu nove romances, duas biografias, sete volumes de ensaios, vinte e seis cadernos de diários e um sem número de cartas. Nasceu numa família que estimulou os seus talentos mas teria sido objecto, na infância, de abuso sexual por parte dos seus meio-irmãos mais velhos. Estas circunstâncias, aliadas a lutos familiares (a mãe morreu quando ela tinha 13 anos) e aos horrores de duas guerras mundiais, têm servido aos seus numerosos biógrafos e estudiosos para explicar as muitas depressões de que sofreu e as tentativas de suicídio que realizou até ao encontro definitivo com a morte. Os violentos tratamentos médicos a que foi submetida num hospício para “mulheres loucas”, que passavam por absoluto isolamento, proibição de qualquer atividade, incluindo a leitura e a escrita, com o conluio bem intencionado de seu marido e irmã, também teriam tido efeitos nefastos. Seu marido decidiu no início do casamento, aparentemente harmonioso, que ela não tinha resistência para ser mãe, o que Virginia Woolf sentiu como uma fragilização da sua identidade. Neste quadro se situam as suas reflexões sobre a condição feminina publicadas em 1929, onde nos conduz eruditamente de ideia em ideia, com lógica, com aparente leveza, com ironia. Inventa uma irmã para Shakespeare, a qual nunca poderia Ter sido escritora pelo mero facto de ser mulher. Verbaliza com 50 anos de antecedência muitas das questões retomadas no final do século XX e até ao presente.