O destino pode ser implacável. Embora algumas pessoas acreditem apenas no livre arbítrio, e que tudo o que nos acontece é obra de nossas próprias atitudes, eu venho aprendendo que nem sempre é assim. Às vezes, apesar de tudo o que fazemos para mudar determinada situações, elas se encaminham para um certo fim, independente de nossa vontade ou de nosso esforço.
Tenho registrado meus sonhos mais significativos em um diário, no Recanto das Letras. Há alguns dias, sonhei que minha mãe se aproximava de mim com o rosto tristonho. Ela carregava uma bolsinha de papelão forrada com plástico grosso, estampada com flores cor-de-rosa, semelhante às que ela carregava quando ia viajar à praia com as amigas. Estava muito triste, e me disse que iria viajar, e que não poderia passar o natal conosco.
Eu perguntei:
-Viajar? Mas para onde, mãe?
-Viajar... eu tenho que ir. Não vou poder passar o natal com vocês.
Eu a abracei, e quando a soltei, ela chorava lágrimas de sangue. Eu disse a ela: "Não vá, mãe, passe o natal conosco..." Mas ela repetiu que precisava ir - e estava bastante contrariada e triste - e acrescentou: "Mas não fiquem tristes, pois o Pai tem planos pra vocês."
Acordei muito angustiada, e contei o sonho a uma de minhas irmãs, que ligou para ela para saber de sua saúde, e depois, ligou-me de volta, dizendo para que eu não me preocupasse, pois ela estava muito bem; tinha sido apenas um sonho. Mas mesmo assim, continuei preocupada.
Dias depois disso, ela adoeceu com um problema na vesícula. Todas as minhas tentativas de apressar a cirurgia deram errado, e tudo o que eu fiz para tentar operá-la em hospital particular, através de uma liminar, também. O hospital descumpriu a primeira liminar, e um outro juiz exigiu uma declaração do hospital dizendo que ali não havia UTI, pois só assim, forçaria a transferência dela para um hospital particular. Todos sabem que a UTI daquele hospital está fechada há meses, mas ninguém lá dentro concordou em expedir a declaração, apesar de meus esforços. Os médicos tentavam nos convencer de que a cirurgia seria simples e que ela tinha muitas chances de sair dela muito bem. Os dias passavam.
Cheguei a consultar um médico para saber quanto ficaria a operação particular. A cirurgia ficaria caríssima e tentei de tudo para operar particular, mas quando conseguia uma resposta positiva, tudo se emaranhava e dava errado na última hora. Eu via as coisas se encaminhando para o pior, e nada parecia dar certo. Após três semanas de internação, faltava apenas um exame para que ela fosse operada por vídeolaparoscopia, e ela se preparou para ele ficando mais de um dia de jejum, obedecendo ao critério injusto e cruel dos hospitais públicos.
No dia do exame, fui perguntar aos enfermeiros da ala cirúrgica por que estavam demorando tanto para levá-la, e eles disseram que eu ficasse calma, pois o exame seria realizado naquele dia. Meia hora depois, o enfermeiro veio me dizer que não sabia o motivo, mas que o exame não seria mais realizado, e como só havia um médico no hospital que fazia aquele exame, e como ele só trabalhasse uma vez por semana, decidiram fazer a cirurgia aberta, devido à urgência do caso dela. Mal pude acreditar no que estava ouvindo!
No início da semana seguinte, levaram-na para a cirurgia, e após seis horas, sabíamos que algo tinha dado errado. Quando ela voltou, assim que a olhamos, percebemos que ela não estava bem. Daí, foi apenas decadência. Passei a noite seguinte com ela, e ela teve muitas dores, e uma forte hemorragia (lembrei-me das lágrimas de sangue do sonho). Além disso, pegou pneumonia.
Ontem, ela estava ainda pior. Não conseguiram conter a hemorragia, e pensavam na possibilidade de entubá-la. Só pedi que aliviem o sofrimento dela. Não acho que ela vá sair viva dessa experiência.
Não peço que ela viva. Ela tem 85 anos de idade, e está doente demais para que possa viver. Há muito deixei de acreditar em milagres. Só peço que ela não sinta dores, apague, não veja nem sinta mais nada. Ontem, quando segurei a mão dela, apesar da aparência ausente, ela apertou minha mão com tanta força, que tive que sair do quarto. Parecia querer me dizer que estava ali, que estava viva.
Ela não vai passar o natal conosco, exatamente como me disse no sonho, mas por que tanto sofrimento? O destino nos levou a exatamente ao momento que vivemos agora, apesar de todo o meu esforço e toda a minha angústia. Só espero que ela não demore muito a deixar este mundo, que seja logo, pois ela não merece sofrer tanto.
Minha mãe é uma amante da vida e da simplicidade. Às vezes, chegava a ser até mesmo 'coquete,' tal a maneira leve e superficial com que encarava as vicissitudes. Jamais lamentou as coisas que não podia mudar, e nem mesmo a morte de alguém querido a deixava triste por mais que algumas poucas horas. Minha mãe sempre aceitou a vida como ela é, e sempre ergueu a cabeça e seguiu em frente, mesmo diante das maiores dores.
Quando todos estávamos sofrendo e lamentando a morte de meu sobrinho, ela era a única que parecia serena e leve. Minha mãe simplesmente nunca ficou 'de luto.' Viveu a vida como quis, fazendo sempre o que desejou, e as pessoas geralmente não aceitam este tipo de atitude; acham que devemos sempre viver 'para alguém,' cumprindo obrigações, mas após criar seus cinco filhos, ela libertou-se de qualquer obrigação para conosco ou para com qualquer outra pessoa. às vezes eu a achei egoísta, mas depois compreendi a sabedoria de sua atitude. Ela jamais fez da vida, um drama.
Dizia sempre que a vida é linda, maravilhosa e muito curta, e que não devemos desperdiçar um minuto sequer com lamentações e tristezas. Desculpe-me, mãe, mas eu não consigo ser assim.