Minha irmã me mandou esta foto. Eu não tinha. |
MEU PAI
Meu pai era um homem humilde. Sempre trabalhou, desde os 14 anos de idade. Sendo o irmão mais velho entre treze irmãos, precisava ajudar nas despesas da casa.
Meu pai só estudou até a quarta série primária, mas tinha um talento nato para a matemática: era capaz de fazer grandes contas "de cabeça" sem errar. Se tivesse tido a oportunidade de estudar, talvez tivesse se tornado um arquiteto, engenheiro ou professor de matemática. Trabalhava como serralheiro, e amava a sua profissão. Porém, apesar de ser um dos melhores serralheiros da cidade, não sabia cobrar pelos seu serviços, e sempre acabava ganhando muito pouco e trabalhando muito. Mas penso que para ele, o trabalho era mais importante do que o dinheiro. Teve a chance de ter um negócio próprio, e algumas pessoas ofereceram-lhe sociedade, mas ele nunca se interessou.
Meu pai era conhecido no bairro como sendo um pai severo: nossos amigos meninos morriam de medo dele, e na rua, todas as crianças o respeitavam. Porém, nunca conheci alguém que não gostasse do meu pai, e não me lembro de alguma vez vê-lo metido em alguma briga ou confusão, ou sendo mal-educado com alguém. Acho até que, por ser gentil demais, as pessoas às vezes abusavam de sua boa vontade.
Nós, como filhos, também o respeitávamos (acho que eram tempos em que respeitar os pais não era uma escolha: as crianças simplesmente sempre faziam isso, e não conheciam outro tipo de comportamento. Bem diferente dos dias de hoje).
Meu pai passou rapidamente por esse mundo: aos cinquenta e poucos anos teve um enfarto, e então descobriu que tinha uma doença no coração. Depois daquilo, viveu até os sessenta e dois anos e teve que se aposentar mais cedo do que desejava. Seu trabalho era pesado, e ele não podia mais carregar suas grades e portões de ferro. Talvez hoje houvesse um tratamento para o problema dele, quem sabe.
Quando ele morreu, eu estava no trabalho. Eu tinha 22 anos. Me lembro da última vez que o vi, naquele mesmo dia, na hora do almoço. Nós almoçamos juntos - eu sempre almoçava em casa. Ele estava bem alegre. Tinha vindo do mercado, onde comprou um saco de biscoitos, arroz, feijão, farinha, açúcar, café, óleo de soja, batatas. Ele fazia questão de manter a casa abastecida, pois tinha medo de morrer e deixar a mim, única filha ainda solteira, e à minha mãe desamparadas. Bem, nós almoçamos e ele disse: "Vou jogar cartas agora." Saiu pela porta da cozinha e nunca mais entrou.
Ele costumava jogar cartas na casa de uns amigos do bairro quase todos os dias.
De uma coisa eu me lembro bem daquele último almoço: pela primeira vez em anos, eu olhei para ele de verdade: vi suas mãos segurando o garfo e levando a comida à boca. Vi sua camisa aberta no peito (estava calor) e percebi seu cabelo branco penteado para trás. Vi ele desaparecer pela porta pela última vez, sem saber que seria a última, e tive uma sensação estranha. Mas fui trabalhar.
Algumas horas depois, quando eu já estava no trabalho, choveu. Houve uma enchente em Petrópolis. Ficamos todos ilhados no centro da cidade, e carros não passavam. Naquela hora, meu pai morria, sem que a ambulância conseguisse chegar até aonde ele estava. Era Fevereiro de 1986.
Lembro-me de minha irmã entrando na loja onde eu trabalhava depois que a água baixou: estava branca e descabelada. Logo percebi que havia algo errado. Ela disse: "É o pai. Ele passou mal." E eu respondi: "Ele morreu, não é?" Ela disse: "É."
E foi assim.
Meu pai foi uma pessoa como tantas outras que veio a esse mundo e se foi quase em branco, quase sem ser percebido. A maioria de nós vivemos e morremos desse jeito. Dá uma sensação de que a vida é besta, mas a vida é só a vida. E a maioria de nós chegamos e saímos daqui sem jamais entender o que ela é. Outra parte fica tentando ensinar aos outros o que é a vida, pois acreditam-se "Iluminados" ou "escolhidos." Mas na verdade, sabem tanto quanto ou até menos que nós.
Melhor viver cada dia da melhor forma possível, sem muitos sobressaltos ou pretensões, aceitando com resiliência o que a vida nos traz - modificando uma coisa ou outra, quando possível, mas aceitando o que não pode ser mudado e tentando se divertir um pouco no meio disso tudo.
Bom dia de paz, querida amiga Ana!
ResponderExcluirO pai que cuida, sustenta, labuta com muita garra para manter a dispensa em dia, o fiel retrato do pai de antigamente.
Assim foi meu pai também, que, atingindo a maioridade, foi embora da casa só avô viver sua própria vida e venceu por si só, com apenas a oitava série do Salesiano. Também foi um bom matemático por necessidade da vida, vivia com as contas (era comerciante), mas amava mesmo a Literatura.
Enfim, a morte deles nos deixa sem chão.
Uma parte de nós fica inabitada.
Muita emoção em seu relato.
Tenha uma nova semana abençoada!
Beijinhos
Tão linda foto quanto a história de vida! Belas recirdações que ficarão pra sempre! Eles fazem falta nas nossas vidas! E, tantas vezes, quem ainda os têm, nem se importam! beijosmtudo de bom,chica
ResponderExcluirBom dia querida amiga Ana!
ResponderExcluirDepoimento de lembranças de infância e de vida enquanto vivias com a presença amada do seu querido pai!
Sei bem como deve ter sido difícil, minha mãe faleceu e faz 33 anos, meu pai faz exatamente 23 anos, 10 anos depois dela, ainda tenho todas as boas lembranças deles!
Que bom que deixaram coisas boas, boa educação e aprendizado de vida!
Amei ler aqui, senti sua alma e deixo abraços bem apertados!
Tão generoso você nos ofertar uma escrita tão bonita, triste e talvez difícil de ser recordada. Nessa humanidade tão comum do seu pai, a gente se reconhece e se conecta num cotidiano tão comum, corriqueiro. Me reconheço na tua dor ali na loja com tua irmã, me reconheço no tentando viver o melhor possível com um pouco de alegria.
ResponderExcluirBeijo, ana paula