PUBLICADO ORINALMENTE EM 2010 NO RECANTO DAS LETRAS
Foi há muito tempo, quando compramos nossa primeira casa. Ela tinha um quadradinho que chamávamos de jardim, e alguns canteiros. Portanto, contratamos um jardineiro. Nós o descobrimos numa daquelas lojinhas à beira da BR 040, em Itaipava. Seu nome era Marcelo.
Marcelo era um bom jardineiro, e tinha jeito com as plantas. Tinha o tal 'dedo verde', pois todas as plantas que ele cuidava, cresciam e ficavam viçosas. Jovem, usava uns óculos estilo Lennon que lhe emprestavam um ar intelectual.
Mas ele tinha um pequeno problema: era muito sonhador. Embora eu não tenha certeza se isso é bom ou ruim.
Tinha mania de me chamar o tempo todo: "Dona Ana! Vê se a altura da roseira está boa!" Eram tantas vezes, que eu às vezes fingia não ouvir. Mas era em vão, pois ele jamais desistia. Berrava: "Dona Aaaaannnnaaaaa!"
Gostava de dar-me plantas de presente, mesmo que às vezes levasse algumas de meu jardim, talvez para presentear outras pessoas. Uma vez, apareceu-me com um vaso grande, onde estava plantado um cactus. Todo sorridente, entregou-me seu presente, dizendo: "Se plantar no chão, ele cresce uns... cinquenta metros!" Respondi: "!!!!" Ele coçou a cabeça, e dando o braço a torcer: "Tá bom, cresce uns... três metros e meio." Este cacto está hoje plantado na frente do meu terreno, em minha nova casa, e realmente, está com uns quatro metros de altura... tá bom, três!
Um dia, ele estava terminando seu serviço quando veio com três gatinhos recém-nascidos, os olhos ainda fechados. "Dona Aaaaannnnaaaaa!" olha o que eu achei no seu jardim, no meio das plantas!" Eu logo percebi que ele mesmo tinha colocado os gatinhos lá, talvez os tivesse encontrado na rua. O muro da casa era muito alto para que alguém os tivesse posto lá, e duvido que alguma gata descuidada iria ter seus filhotes em um jardim vigiado por um Rottweiler! Foi um custo conseguir alguém que ficasse com os gatinhos, e eu, com viagem marcada para a manhã seguinte, tentando ligar para as associações de animais, com um conta-gotas cheio de leite e três gatinhos berrando de fome. Mas Marcelo jurou de pés juntos que não tinha sido ele a abandonar os gatinhos em meu jardim...
Um dia, ele não apareceu para trabalhar. Ligamos para ele, e ele contou-nos a novidade: "Eu agora trabalho com cobras. Capturo cobras e vendo para o Butantã!" Repliquei, admirada: "Mas como você manda as cobras para lá?!" E ele: "Ué! Por Sedex!"
Mas acho que o negócio das cobras não deu muito certo, pois ele logo voltou a ser nosso jardineiro. Ou melhor, paisagista.
"Dona Ana! Fiz um curso de paisagismo por correspondência. Se a senhora quiser, eu faço um projetinho para o seu jardim, tudo por computador!" "Ah, que bom! E quanto custa?" "Quinhentos reais!" "!!!!!" "Mas para a senhora, eu faço por... cinquenta!" Educadamente, recusei a proposta e desejei-lhe boa sorte em seu novo empreendimento.
Começou a faltar novamente, alguns meses depois. Ligamos para ele. Ele tinha uma nova profissão: "Eu não faço mais jardim, Dona Ana! Agora eu crio vídeo games e vendo pela internet! Se a senhora quiser, eu vendo baratinho..." Mas não, obrigada, eu não quis...
Infelizmente, acho que não vendeu muitos vídeo games, e voltou a ser jardineiro. Certa tarde, ele estava trabalhando no jardim, quando deu o seu grito de guerra: "Dona Aaaannaaaa!" Fui correndo atender ao seu desespero, e ele falou: "Vou sair mais cedo hoje. Fui picado por uma aranha caranguejeira imensa... estou meio tonto..." "Nossa, então espere, que eu vou ligar para o meu marido, e a gente te leva para o hospital. Onde foi que ela picou?" "Aqui..." Olhei, e não vi nada. Ele continuou: "Não precisa me levar para o hospital não, que eu tenho soro em casa, na geladeira!"
Mesmo assim, nós gostávamos dele. Ele ia e vinha, marcava e não aparecia, mas ele tinha alguma coisa de agradável que nos fazia sempre chamá-lo de novo. Acho que era a sua alma de sonhador, que emprestava viço a todas as plantas.
Ainda chegou a fazer o jardim da nossa nova casa. veio apenas umas três ou quatro vezes, e depois, sumiu de novo. Desistimos dele, mas espero que ele não tenha desistido de seus sonhos.
Enquanto escrevia esta crônica, meu novo jardineiro, o Sandro, me chamou umas três vezes: "Dona Aaaannaaaaa!"