Na tua idade, cabem quase duas de mim. Daria, nesse tempo, para uma pessoa da minha idade ter vivido quase duas vezes!
Hoje eu fiquei me lembrando de quando eu era pequena - e os irmãos maiores já trabalhavam - e você ficava me contando histórias de sua vida quando era criança. Falava do colégio interno, de como foi difícil ser órfã de mãe aos quatro anos, das casas por onde passou e foi mal tratada, e das que foi bem tratada. Me contava dos dias de visita de seu pai - meu avô no colégio interno, e dos doces que ele levava e você tinha que repartir entre todas as outras meninas, sobrando só um pedacinho de nada para você. Falava das visitas de Getúlio Vargas a Petrópolis, e de como as meninas do colégio interno iam ficar olhando a rua, para vê-lo passar, e acenavam para ele.
Você me contava de um namorado chamado Daniel, que usava um terno horroroso, amarelo com xadrez marrom, e que por isso - só por isso - você não quis namorá-lo. Falou de um outro, de família muito rica e tradicional aqui na cidade, que você não quis namorar porque você era muito pobre, e tinha vergonha.
Depois, me falava da primeira vez que viu meu pai passando, de tamancos, marmita debaixo do braço, para ir trabalhar. Você estava na janela, e ele te olhou. Ele era o mais velho de treze irmãos. Você me disse que quando ele ia embora, depois de vocês namorarem, você às vezes 'fugia' para ir dançar.
Você me falava na alegria que foi, para você, quando se casou e mudou-se para a sua primeira casa - sua, não dos outros - e seu pai comprou os móveis, e você começou a formar a sua família - não a dos outros. Você me falava da vida dura que tinha, pois naquela época, não morava quase ninguém no bairro, e não havia ônibus ou paralelepípedos nas ruas; só mato em volta, e quando precisava sair, descia a rua à pé, e subia à pé.
Quando éramos crianças, você não tinha máquina de lavar, nem empregada doméstica; fazia a maior parte do serviço sozinha, e nós, as meninas, ajudávamos quando estávamos com vontade. Mas aos onze anos, você me ensinou a cozinhar, lavar e passar roupas e cuidar da casa.
Você me levava na Praça da Liberdade para brincar nos balanços e gangorras, e depois, andávamos à pé pela Avenida Koeller. Quando era sexta-feira, muitas vezes nós íamos encontrar meu pai na saída do serviço, e depois, fazíamos compras no supermercado. Lembro-me de você colocando potinhos de danone na nossa mão dentro do mercado, e dizendo: "Come escondidinho!" Era a única maneira de comermos iogurte: no supermercado, com os dedos. Só mais tarde as coisas melhoraram...
Lembro que eu e minha irmã ficávamos sempre doentes ao mesmo tempo: sarampo, rubéola, caxumba, catapora, gripe, hepatite. E lá íamos nós para o médico!... E você acordava durante a noite para ver se tínhamos febre e para dar os remédios.
Lembro do quanto eu era chata demais, e só comia se você contasse uma história. E foi assim que descobri a Branca de Neve, a Bela Adormecida, Os Três Porquinhos, e também as lendas do livro de gramática no qual você tinha estudado no colégio interno: A Lenda do Uirapuru, da Vitória Régia, do Rouxinol, da Índia Potira, dos animais falantes. Lembro-me do livrinho e disquinho do patinho Feio que você comprou para mim, e da musiquinha que me fazia chorar: "Que bom, seria ter uma família / mamãe, papai, irmãos, juntinhos a mim..."
Eu jamais me esqueço de uma vez que você assinou para mim a revista Nosso Amiguinho, que recebi durante dois anos, e onde aprendi muitas coisas interessantes. Tenho até hoje os livros de Inglês sem Professor e os dicionários grossões de Português que você comprou para mim, lembra? As pessoas vendiam de casa em casa, e a gente pagava à prestação.
Lembro-me dos doces de leite quebra-queixo que você fazia, e que um dia, colocou num embrulhinho para eu levar para a professora na escola, e depois disso, todo dia ela pedia: "Ana, fala pra sua mãe mandar doce de leite!"
Lembro-me de quando você brincava de casinha com a gente; as panelinhas eram latinhas de extrato de tomate, e o fogãozinho, com fogo de verdade, eram gravetinhos no meio de umas pedras. As outras meninas não tinham fogões que acendiam de verdade!
Lembro do quanto você lutou para nos manter em colégio particular. Lembro de você nas filas, esperando para conseguir bolsas de estudo com os vereadores. Lembro de você esperando para falar com a diretora no Colégio Progresso - a Dona Franci - e do quanto ela foi legal, deixando a gente estudar lá tantos anos de graça.
85 anos é muito tempo, e não caberia no espaço deste blog. Mas gostaria muito de dizer que eu me lembro de tudo, de todas as suas histórias, sem as quais eu não teria me transformado em mim. Dos seus cuidados, das suas broncas, das suas surras, dos seus discos do Julio Iglesias, do Roberto Carlos, do Wando, e você dançando e cantarolando pela sala, e mexendo nas panelas enquanto ouvia música, e a casa com cheirinho de cera. 85 anos é muito tempo.
Mas parece que foi ontem. Só queria desejar a você um Feliz Aniversário, mãe.