quarta-feira, 5 de abril de 2017
Exposição
As cores da aquarela eram cores magoadas,
Havia imensos nãos entre a palheta seca
E as tintas aguadas.
O pincel tocava as cores que dormiam, caladas,
Entre as nervuras rachadas.
Não havia água.
O sonho e o desejo permaneciam mudos
Sobre a tela branca que ninguém pintava.
Quadros jaziam sobre as paredes nuas,
O anseio dos olhos não passava pelos corações,
Não transportavam as emoções caladas.
Havia um grito preso que queria ser,
Havia a ansiedade de nascer...
-Mas como, sem um berço, sem caminhos, sem estradas,
Sem cores – só as telas brancas, que não traduziam
A dor presa no ventre, que quase matava?
Prece
Madrugada;
Os olhos se abriam de repente
Na casa vazia.
Na cozinha,
Uma xícara de chá de solidão.
Por companhia,
Os ecos das batidas
Soando pela casa:
Um relógio carrilhão.
Uma, duas, três horas de agonia,
Quatro, cinco, seis passos pelo chão
Marcado pelos saltos
Daqueles que se foram.
A prece em desespero
Às pressas recitada,
Palavras gotejadas
Aos pés da madrugada...
A prece, bem aos poucos
Virando imprecação:
"Para onde foi aquele
Que transformou-me a vida
Nessa desilusão?"
De volta à cama, o suor
Após o pesadelo...
-Não há nada que apague,
Ou que traga de volta
Por esses mesmos trilhos
Aquilo que se foi!
Sozinha pela vida,
Tornara-se refém
Daquela prece árida,
Daquelas noites pálidas
De dores sussurradas...
Nada mais lhe restava,
A não ser uma prece
Na qual não acreditava,
E a última palavra
(Que conhecia bem)
Pois era a que selava
A sua solidão:
"Amém."
sexta-feira, 31 de março de 2017
"Paz Sem Voz?"
Às vezes na vida não basta que sejamos pacientes e cordatos; é preciso exigir pressa, é preciso cobrar providências. A paciência é uma virtude, mas quando exagerada, camufla a covardia.
Não basta, a fim de mantermos a paz, que finjamos não ouvir as injúrias, as indiretas e as palavras ríspidas a nós dirigidas; é preciso que olhemos nos olhos dos nossos ofensores e deixemos bem claro que não mais toleraremos tal comportamento.
Manter a paz a qualquer custo pode nos levar a contrair doenças psicossomáticas causadas por emoções reprimidas; além disso, quem sempre finge não se importar ao ser ofendido, torna-se saco de pancadas e é taxado de bobo.
Não é possível dizer sempre “sim” a tudo que nos pedem, especialmente naqueles momentos que reservamos para nosso descanso, meditação ou lazer.
Quem sempre se desloca para atender pedidos alheios, corre o risco de nunca mais ter paz. E não será valorizado por isso, pois na primeira vez em que realmente não puder atender a um pedido, será chamado de egoísta. Aprender a dizer “não” quando algo não nos é conveniente, não nos diz respeito, ou simplesmente é algo não queremos fazer, é sinal de força, e ajuda a impor limites para que não invadam a nossa tranquilidade e a nossa privacidade.
Muitos de nós passamos muito tempo apenas tentando defender nossos espaços; mas às vezes, é preciso ser mais convincente, e ao invés de apenas nos defendermos, enquanto o inimigo ganha território, é necessário atacar, fazer o inimigo recuar a fim de que retomemos o espaço que nos pertence. Quem não sabe ser combativo, termina sendo acuado a um canto, obedecendo as determinações que mais convém às necessidades alheias.
Perdoar não quer dizer voltarmos a nos submeter a quem frequentemente abusa de nós e nos magoa; muitas vezes, perdoar e esquecer favorece bem mais a quem perdoa do que a quem é perdoado, pois nos dá paz de espírito e espaço para seguirmos com a vida, sem nos prendermos a ressentimentos e nos contaminarmos com a raiva e com pensamentos vingativos. Porém, é preciso, algumas vezes perdoar e esquecer aqueles que vivem nos fazendo mal.
Ser feliz é melhor que ter razão? Depende; quem poderia dizer-se feliz, quando tem certeza absoluta de alguma coisa, mas concorda em abrir mão de suas ideias apenas para agradar aos outros ou conservar uma falsa paz? Ser feliz também é lutar pelas nossas convicções, especialmente quando temos certeza de que elas são verdadeiras. Quem deixa que suas convicções sejam sempre atropeladas, acaba mudo, relegado ao quartinho dos fundos onde ninguém o respeita.
Há certas situações na vida que exigem que saibamos nos impor, lutar pelo que acreditamos, dizer não, erguer limites, desfazer amizades abusivas, sair da estrada reta e virar à direita ou à esquerda, em direção a um novo caminho – mesmo que ele seja desconhecido – pois se o caminho que conhecemos tornou-se cansativo, improdutivo e cheio de padrões repetitivos, é melhor correr o risco de mudar a permanecer nele.
quarta-feira, 29 de março de 2017
SOBRE CURIOSOS BEM INTENCIONADOS
Eu estava sentada no sofá daquela casa, sem pensar muito em nada. De repente, a pergunta inesperada – pois sei que a pessoa que a formulou não tem nenhum interesse solidário na minha vida, e nem faz questão absoluta de me ver feliz; no rosto dela, um ar forçado de preocupação: “Está tudo bem com você?” Eu respondi que sim, e continuei em silêncio. A conversa continuou em seu ritmo anterior, e dali a alguns minutos, ela repetiu a pergunta, obtendo a mesma resposta monossilábica. Ainda o fez mais uma vez, e após obter a mesma resposta, acrescentou: “É que eu estou te achando tristinha hoje... está tudo bem mesmo?” Eu ri, e disse que estava bem e que não estava triste, encerrando o assunto.
Em outra ocasião, quando fazia obras na minha nova casa, um desses “amigos” interessados veio dar uma olhada. Após percorrer o espaço, fazendo alguns elogios pouco convincentes, começou a fazer observações bem intencionadas: “No lugar de vocês, eu colocaria um jardim de inverno ali (já havia um lavabo e as escadarias para o andar superior) e moveria as escadas mais para lá. Também teria feito a cozinha maior e a área de serviço menor, e blá, blá, blá...” Quando ele foi embora, ficamos andando pelo espaço, calados, ainda afetados pelos comentários dele. Suas críticas veladas nos pegaram despreparados, e quase arruinaram nosso dia.
Eu e meu marido caminhávamos pela Rua 16 de março em uma linda tarde de sábado, quando a moça bonita e simpática nos parou na calçada, e cheia de sorrisos, começou a reclamar de algo que estava no prédio onde meu marido trabalha (ela mora em frente) e que a incomodava. Ora, meu marido apenas trabalha no prédio, não é síndico ou morador, e não cabe a ele resolver qualquer problema referente a ele. Após falar mal de uma ou duas pessoas, ela soltou mais uma ou duas observações ferinas e se foi, perdendo-se entre a multidão que passava naquela calçada, carregando seus sorrisos sinceros e distribuindo-os entre os que encontrava. Ficamos caminhando em silêncio durante algum tempo, após o qual só pude observar: “Que carga pesada tem essa pessoa!”
Existem pessoas assim, infelizmente. Elas deixam no ar uma observação maldosa – mas tão pequena e casual, que na hora “h” nem nos conscientizamos dela – mas que depois ficam martelando nossos pensamentos, e nos vemos aborrecidos sem saber muito bem qual o motivo. Quem nunca se pegou de mau-humor de repente, sem que houvesse uma explicação para tal? Se prestarmos atenção e fizermos uma curta retrospectiva das pessoas com quem estivemos, talvez encontremos o motivo em um desses comentários “bem intencionados.” E na maioria das vezes, quem o fez, o fez de propósito, a fim de minar sua autoconfiança e cavar um buraco na sua autoestima por onde suas setas de veneno poderão entrar mais facilmente.
Meu primeiro emprego, aos 18 anos de idade, foi em uma das lojas de sapatos que pertencia a uma família próspera, distinta e muito tradicional aqui na minha cidade. A proprietária – uma mulher que naquela época tinha a idade que tenho hoje – um dia me disse: “Ana, quando alguém nos pergunta se estamos bem, devemos dizer apenas que estamos mais ou menos, ou que está tudo indo. Nunca entre em detalhes, nunca dê muitas explicações, porque na maioria das vezes, quem faz esse tipo de pergunta está apenas curioso, só quer saber da sua vida particular, e não é bem intencionado. Nunca devemos entrar em detalhes sobre nossa prosperidade para evitar despertar inveja. Também não devemos fazer confissões quando estamos mal, para não despertar fofoca.” Quando ela me disse aquilo, eu tinha apenas 18 anos, e não compreendi; como não compartilhar com as pessoas que gostam da gente os nossos momentos felizes, as nossas conquistas? Anos depois, eu compreendi o que ela estava querendo me dizer.
Nem sempre, as pessoas que estão em volta da gente realmente nos apreciam. Elas estão apenas curiosas. Ou então, ao perguntarem sobre nossas vidas, só querem nos comparar a elas, para ver se somos tão infelizes quanto, ou para diminuir as nossas conquistas e alegrias através de comentários sutis e totalmente maldosos.
É importante identificar estas pessoas – elas podem estar entre os amigos, colegas de trabalho e até mesmo membros familiares – e evitar fazer comentários muito otimistas ou pessimistas sobre as nossas vidas. Por trás de uma simples pergunta casual, pode haver uma seta envenenada. Por que nos expormos ao veneno da curiosidade alheia?
terça-feira, 28 de março de 2017
#EuNãoTenhoGatos
Eu ali, concentrada, dando minha aula. De repente, meu aluno indaga: "Ué, Ana... você tem gatos?" Eu olho para ele (eu estava escrevendo no quadro) e respondo, surpresa; afinal, aquela pergunta estava totalmente fora do contexto da aula: "Não! Por que?" Ele aponta para a porta da sala de aula, e diz: "Porque tem um gato bem ali!"
Olho para fora, e vejo essa gatinha passeando pela minha sala de jantar. Logo a reconheci, pois numa noite em que meu marido ainda não estava em casa, ela me deu um baita susto: passei pelo corredor, e dei com aquela sombra sinuosa e silenciosa descendo as escadas. Eu me arrepiei até o último ossinho da coluna, e ela estancou entre um degrau e outro, me olhando, as pupilas dilatadas em estado de alerta. Esclarecida a situação, ainda ficamos ali paradas, nos olhando e testando nossas reações. De repente, eu sorri, e esfreguei os dedos da mão, chamando-a. Ela ergueu a calda, e acabou de descer as escadas, ronronando, e veio para o meu colo.
Desde então, ela vem me fazendo visitas frequentes. Quando havia uma moça aqui me ajudando na limpeza, chego na varanda e a vejo sentada naquela posição de iogue, olhando a moça limpar as vidraças da porta. Explico que ela não é minha, e ela diz: "Pensei que fosse! Está aí há algum tempo, me vigiando..." Quando olhei de novo, ela já tinha ido embora.
É bom tê-la aqui de vez em quando, sabendo que ela logo vai embora. Mas ela nunca tinha se deitado na cama do quarto de hóspedes antes. Pelo menos, não que eu tenha visto. E está chovendo muito lá fora; como eu poderia abrir a janela e mandá-la sair, debaixo desse aguaceiro? Seria cruel. E ela sabe disso. Já percebeu que pode me manipular.
Como vocês podem ver, ela não tá nem aí pra mim... |
Só espero que ela seja castrada - tem dono, pois está muito bonitinha e bem tratada. Se ela não for, tomara que não venha trazer bebês para eu cuidar.
Não quero ter netos.
segunda-feira, 27 de março de 2017
Vazio
Havia uma estrada, e ao final desta, um penhasco
Onde as pessoas perdidas se sentavam
Para olhar o mar.
O marulhar das ondas trazia à praia, lá em baixo,
Cenas que que eles queriam recordar.
Mas elas traziam, e levavam de volta
Para as profundezas, o que estava consumado.
E eles dormentes, no alto do penhasco,
Buscando ilusões no que fora encerrado.
Enquanto isso, as águias passavam,
E as gaivotas gritavam, lá no alto...
O sol percorria sua viagem diária
De nascer e morrer no mesmo acaso.
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