Por que Sou Pagão – por Lin Yutang
A religião é sempre uma coisa pessoal, individual. Toda pessoa deve formar seus próprios pontos de vista sobre a religião, e se for sincera, Deus não a culpará, seja qual for o resultado. A experiência religiosa de cada homem é válida para ele, pois não é matéria de discussão. Mas a narração da luta de uma alma honesta com os problemas religiosos, relatada de forma sincera, será sempre útil para os demais. Por isso é que se tratando de religião, devo fugir de generalidades e narrar meu caso pessoal.
Sou pagão. Esta declaração pode ser tomada como implícita de uma revolta contra o cristianismo; mas a “revolta” parece uma palavra crua e não descreve exatamente o estado de espírito de um homem que, por uma evolução muito agradável, ao passo se afastou do cristianismo, uma evolução durante a qual se aferrou desesperadamente, e com amor e com piedade, a uma série de dogmas que, contra a sua vontade, se iam afastando dele. Impossível, portanto, falar de rebelião, pois jamais houve ódio.
Como nasci na família de um pastor protestante e fui algum tempo preparado para o ministério cristão, as minhas emoções naturais ficaram do lado da religião durante toda a luta, e não contra ela. Nesse conflito de emoções e compreensão, cheguei gradualmente a uma posição, por exemplo, em que havia decididamente renunciado à doutrina da redenção, posição esta que não poderia ser classificada simplesmente de paganismo. Era, e ainda é, uma condição de crença no tocante à vida e ao universo e na qual me sinto natural e à vontade, sem ter de estar em guerra comigo mesmo. O processo foi tão natural quanto o desmame de uma criança ou a queda de uma maçã madura por terra. E chegado o momento de cair a maçã, não quis imiscuir-me na queda. Na fraseologia taoista, isto não é mais do que viver no Tao e, na fraseologia ocidental, não é mais do que ser sincero consigo próprio e com o universo, segundo as luzes de cada qual. Creio que ninguém pode ser natural e feliz sem que seja naturalmente sincero consigo mesmo, e ser natural é estar no céu. Para mim, ser pagão é ser natural.
“Ser pagão” não é mais que uma frase, como “ser cristão”. Não é mais que uma afirmação negativa, porque, ara o comum dos leitores, ser pagão significa unicamente não ser cristão; e, como “ser cristão” é uma expressão muito ampla e ambígua, o significado de “não ser cristão” está igualmente mal definido. Pior é definir um pagão como uma pessoa que não crê na religião nem em Deus, pois teríamos de explicar ainda o que se quer dizer com Deus, ou uma atitude religiosa perante a vida. Os grandes pagãos sempre tiveram uma atitude profundamente reverente para com a natureza. Temos, pois, de tomar a palavra no seu sentido convencional e significar simplesmente que um homem que não vai à igreja (salvo por uma inspiração estética, de que ainda sou capaz) não pertence ao rebanho cristão e não aceita os seus dogmas usuais, ortodoxos.
Sob o aspecto positivo, um pagão chinês, a única espécie de que se possa falar com algum sentimento de intimidade, é o que começa esta vida terrena pensando que ela é tudo o que pode ou deve ocupar-nos, deseja viver em segurança e felicidade enquanto dure esta vida, tem seguidamente o sentimento da pungente tristeza desta vida e afronta-o alegremente, mostra uma aguda apreciação do belo e do bom cada vez que os encontra, e considera que fazer o bem traz em si a sua recompensa mais satisfatória. Admito, contudo, que alimenta uma leve piedade ou desdém pelo homem “religioso”, que faz o bem para chegar ao céu e que, implicitamente, não o faria se não tivesse a promessa do céu ou a ameaça do inferno. Se esta afirmação é exata, creio que neste país há muito mais pagãos, mais do que eles próprios creem. O cristão liberal moderno e o pagão estão na verdade muito próximos um do outro, e só diferem quando começamos a falar de Deus.
Creio conhecer as profundezas da experiência religiosa, pois creio que se pode ter essa experiência sem ser um grande teólogo, como o Cardeal Newman; do contrário, o cristianismo não valeria a pena, ou já deve ter sido terrivelmente mal interpretado. Tal como se me afigura atualmente, a diferença de vida espiritual entre um cristão e um pagão é simplesmente esta: o cristão vive num mundo governado e vigiado por Deus, com quem mantém constante relação pessoal, e portanto, num mundo presidido por um pai bondoso; sua conduta se eleva muitas vezes a um nível condizente com a consciência de ser filho de Deus, nível sem dúvida difícil de manter em toda a vida, ou mesmo por uma semana, ou um dia; sua vida real varia entre o nível humano e o nível religioso.
Por sua vez, o pagão vive neste mundo como um órfão, sem o benefício desse consolador sentimento de que há sempre no céu alguém que, quando se estabeleça essa relação pessoal que se chama prece, cuidará de seu bem estar privado. Não há dúvida que é um mundo menos animado; mas tem o pagão o benefício e a dignidade de ser um órfão, que por sua necessidade aprendeu a ser independente, a cuidar de sua pessoa, e a ser mais amadurecido, como o são todos os órfãos. Esta sensação, mais que qualquer crença intelectual – esta sensação de cair num mundo sem o amor de Deus – foi o que me assustou na realidade até o último momento da minha conversão ao paganismo; cria, como muitos cristãos natos, que se não existisse um deus pessoal, o universo perderia sua base.
E contudo, o pagão pode chegar a um ponto em que olha este mundo como um mundo mais infantil, mais adolescente, diria eu; útil e aproveitável, se se mantém sem mácula a ilusão; um mundo mais lindamente colorido também, mas por conseguinte, menos solidamente certo, e, por isso, de menos valor. Deve-se estar decidido a pagar um preço pela verdade; quaisquer que sejam as consequências, venha a verdade. Esta posição é comparável, é psicologicamente igual à do assassino: se cometeu um assassinato, o melhor que pode fazer depois é confessá-lo. Por isso que digo que é preciso pouca coragem para chegar a ser pagão. Mas, depois de ter aceito o pior, fica a gente sem temores. A paz de espírito é a condição mental de haver aceitado o pior. (Aqui vejo por mim mesmo a influência budista ou taoísta.)
Ou poderia assinalar a diferença entre os mundos pagão e cristão desta maneira: o pagão em mim renunciou ao cristianismo ao mesmo tempo por orgulho e humildade, orgulho emocional e humildade intelectual, mas talvez em conjunto menos por orgulho que por humildade. Por orgulho emocional, porque odiava a ideia de que tivesse que haver alguma razão para comportar-nos como homens decentes, além da simples razão de que somos seres humanos; teoricamente, podeis classificar isto como um pensamento tipicamente humanista. Mais, porém, por humildade intelectual, simplesmente porque, com os nossos conhecimentos astronômicos, não posso crer que um ser humano individual seja tão terrivelmente importante aos olhos do Criador, vivendo como vive o indivíduo, átomo infinitesimal nesta terra que é um átomo infinitesimal do sistema solar, o qual é um átomo infinitesimal do universo de sistemas solares. O que me assombra é a audácia do homem e a sua presunçosa arrogância. Que direito temos de conceber o caráter de um Ser Supremo, de cuja obra apenas podemos ver uma milionésima parte, e de postular acerca de Seus atributos?
A importância do indivíduo humano é indubitavelmente um dos dogmas básicos do cristianismo. Mas vejamos a que ridícula arrogância isto conduz na prática usual da diária vida cristã.
Quatro dias antes dos funerais de minha mãe ocorreu uma chuva torrencial, e se continuasse, como costumava acontecer em Changchow em julho, a cidade se inundaria e os funerais não poderia, ser realizados. Como quase todos nós tínhamos chegado de Xangai, o atraso acarretaria inconvenientes. Uma de minhas parentas – exemplo um tanto extremado, mas não raro, do crente cristão na China – disse-me que tinha fé em Deus, que sempre atendia aos Seus filhos. Rezou, e parou a chuva, aparentemente com o fim de que uma pequena família de cristãos pudesse realizar um funeral sem mais tardança. Mas a ideia implícita de que, se não fora pela nossa causa, Deus teria submetido Changchow a uma enchente devastadora, como ocorria amiúde, ou que não deteve a chuva por eles, mas por nós, que queríamos ter um funeral sem lama, afigurou-se-me um caso típico de incrível egoísmo. Não posso imaginar que Deus atenda a filhos tão egoístas.
Houve também um pastor cristão que escreveu a história de sua vida, dando fé das muitas provas da ação de Deus em sua vida, com o propósito de glorificar a Deus. Uma das provas que aduzia era que, depois de ter reunido seiscentos dólares-prata para comprar a passagem para os Estados Unidos, Deus reduziu a taxa de câmbio no dia exato em que esse indivíduo tão importante deveria comprar a passagem. A diferença na taxa de cambio sobre seiscentos dólares de prata deve ter sido de uns dez a vinte dólares, e Deus estava disposto a comover as bolsas de paris, Londres e Nova York a fim de que esse seu filho pudesse economizar dez a vinte dólares. Recordemos que essa forma de glorificar a Deus não é coisa rara em nehuma parte da Cristandade.
Ó insolência e vaidade do homem, cujo lapso de vida é apenas de três vintenas de anos! A humanidade, em conjunto, pode ter uma história significativa, mas o homem como indivíduo, segundo as palavras de Su Tungp’o, não é mais que um grão de milho num oceano ou um inseto fuyu, que nasce de manhã e morre à tarde. Não quer ser humilde o cristão. Não se satisfaz com a imortalidade da grande corrente da vida, de que faz parte e que flui para a eternidade como um poderoso rio. Um vaso de argila perguntará ao oleiro: “Por que me deste esta forma e por que me fizeste tão quebradiço?” O homem não se satisfaz com haver recebido este corpo maravilhoso, este corpo quase divino. Quer viver para sempre! E não deixa tranquilo a Deus, há de dizer suas ladainhas e rezar diariamente, para pescar pequenos dons pessoais na Fonte de Todas as Coisas. Por que não pode deixar tranquilo a Deus?
Houve uma vez um sábio chinês que não cria no budismo, mas cuja mãe era crente. Era uma mulher devota e pretendia crescer em méritos balbuciando “Namu Omitabha!” mil vezes dia e noite. Mas, a cada vez que pronunciava o nome de Buda, seu filho a chamava: “Mamãe!” A mãe se aborreceu por fim. “Bem,” disse o sábio, “não crês que Buda se aborreceria também se pudesse ouvir-te?”
Meu pai e minha mãe eram devotos cristãos. Era de se ver meu pai quando dirigia as preces noturnas da família. E eu era um menino sensitivamente religioso. Como filho de um pastor, recebi as facilidades da educação dos missionários, aproveitei seus benefícios e sofri suas desvantagens. Sempre fui agradecido a esses benefícios e converti em força minha as suas desvantagens. Porque, segundo a filosofia chinesa, não há, na vida, boa ou má sorte.
Era-me proibido ir aos teatros chineses, nunca me permitiram escutar os troveiros chineses, e separaram-me inteiramente da grande tradição e da mitologia populares. Quando ingressei num colégio de missionário, descuidou-se por completo a escassa base de chinês clássico que me havia dado meu pai. Talvez haja sido melhor assim, para que mais tarde, depois de receber uma educação completamente ocidentalizada, pudesse eu volver ao chinês com a frescura e o vigoroso deleite de um filho do Ocidente que se adentra no país da maravilha oriental. A maior sorte que tive foi a substituição do pincel de escrever pela caneta automática, durante o meu período de colegial e de adolescente, pois conservou intata para mim a frescura do mundo mental do Oriente, até que eu estivesse preparado para ele. Se o Vesúvio não houvesse coberto Pompéia, Pompéia não estaria tão bem conservada e os sinais das rodas dos carros nas suas ruas não teriam ficado tão claramente marcados até hoje. A educação num colégio de missionários foi o meu Vesúvio.
Pensar era sempre aliar-se com o Diabo. Durante o meu período de colegial adolescente que, segundo o costume, foi o meu período religioso, já ocorria o conflito entre um coração que sentia a beleza da vida cristã e uma cabeça que tendia a raciocinar tudo. É curioso, mas não posso recordar instantes de tormento ou desespero, como os que quase levaram Tolstói ao suicídio. Em cada etapa me sentia um cristão unificado, harmonioso em sua crença, mas um pouco mais liberal que na etapa anterior, e aceitando menos algumas doutrinas cristãs. De qualquer modo, sempre podia voltar ao Sermão da Montanha. A poesia de frases como “considerai os lírios do campo,” era devidamente boa para não ser verdadeira. Isto, e a consciência da íntima vida cristã, foi o que me deu forças.
Mas as doutrinas se afastavam terrivelmente. Primeiro, começaram a causar espécie as coisas superficiais. A “ressurreição da carne”, desmentida há muito tempo, desde quando não ocorreu a esperada aparição do Cristo no século I e quando os Apóstolos não se levantaram de seus túmulos, estava ainda no Credo. Isto era uma dessas coisas.
Depois, inscrito numa classe teológica e iniciado no mais sagrado, soube que outro artigo do Credo, o Parto da Virgem, estava em dúvida, pois diferentes deães de seminários teológicos ocidentais sustentavam critérios distintos. Exasperou-me que se exigisse dos crentes chineses a crença categórica nestes artigos antes de serem batizados, ao passo que os teólogos da mesma Igreja o consideravam matéria de dúvida. Não me pareceu sincero, e não me pareceu bem.
Outros estudos sem maior significação, como os comentários sobre o local da “porta da água” e outras minúcias que tais, me relevavam completamente da responsabilidade de tomar à sério esses estudos teológicos, e ganhei notas más. Meus professores consideraram que eu não tinha jeito para o ministério cristão, e o bispo opinou que eu podia muito bem ir-me embora. Não iam desperdiçar comigo a sua instrução. Também isto de afigura uma bênção disfarçada. Duvido que, se seguisse adiante e houvesse envergado as roupagens clericais, tão fácil não me seria ser honesto comigo mesmo mais tarde. Mas esse sentimento de rebelião contra a discrepância de crenças que se exigia do teólogo e do convento comum foi a sensação mais próxima da “revolta” que jamais tive.
Então já havia eu chegado à conclusão de que os teólogos cristãos eram os maiores inimigos da religião cristã. Jamais pude contornar duas grandes contradições. A primeira era que os teólogos haviam feito com que toda a estrutura da fé dependesse da existência de uma maçã. Se Adão não tivesse comido a maçã não haveria pecado original, e se não houvesse pecado original não haveria necessidade de redenção. Isto me era evidente, qualquer que fosse o valor simbólico da maçã.
Mas me pareceu absurdamente injusto com os ensinamentos de Cristo, que jamais disse uma palavra acerca do pecado original ou da redenção. De qualquer modo, sinto, como todos os orientais modernos, que não tenho consciência do pecado, e não creio nele, simplesmente. Tudo o que sei é que, se Deus me ama apenas a metade do que me ama a minha mãe, não me mandará para o inferno. Isto é uma conclusão da minha consciência íntima e por nenhuma religião poderia eu negar a sua verdade.
Ainda mais absurda me pareceu outra proposição. Trata-se do argumento de que, quando Adão e Eva comeram uma maçã durante a sua lua-de-mel, tanto se enfureceu Deus que condenou sua posteridade a sofrer de geração em geração por esse pequeno pecado, mas, quando a mesma posteridade matou ao único Filho do mesmo Deus, Deus ficou tão encantado que perdoou a todos. Por mais que me expliquem e discutam comigo a respeito, não me adianta nada. Esta foi a última das coisas que me perturbaram.
Mas, depois de formar-me, era eu um zeloso cristão e dirigia voluntariamente uma escola dominical em Tsing Hua, um colégio não-cristão em Pequim, para inquietação de muitos membros da faculdade. A reunião de Natal na escola dominical era uma tortura para mim, porque eu impingia aos meninos chineses a história dos anjos que cantavam à meia-noite para apregoar o acontecimento, e não acreditava nisso. Tudo havia desaparecido com o raciocínio, e só restavam o amor e o temor: uma espécie de pegajoso amor a um Deus onisciente, que me fazia sentir feliz e pacífico e suspeitar que não seria tão feliz e pacífico sem esse reconfortante amor; e o temor de entrar num mundo de órfãos.
Finalmente veio a minha salvação.
-É que – arrazoei com um colega – se não houvesse Deus, a gente não faria o bem, e o mundo se transtornaria. –Por quê? Respondeu meu colega, confuciano. – Viveríamos uma decente vida humana simplesmente porque somos seres humanos decentes.
Este apelo à dignidade humana cortou o meu último laço com o cristianismo, e desde esse momento fui pagão.
Agora tudo me é muito claro. O mundo da crença pagã é mais simples. Nada postula, e não está obrigado a postular porque apela para uma vida boa por si mesma. Justifica melhor o bem, pois torna desnecessário, para fazer o bem, justifica-lo de algum modo. Não anima os homens, por exemplo, a praticar um pequeno ato de caridade mediante uma série de postulados hipotéticos – pecado, redenção, a cruz, obtenção de um lugar no céu, obrigação mútua entre os homens devido à relação com um terceiro no céu – que são desnecessariamente complicados, e não pode nenhum ser demonstrado com aprova direta. Se se aceita a afirmação de que fazer o bem traz em si a própria justificativa, é impossível não considerar que todos os untos teológicos são demais e tendem a nublar o brilho de uma verdade moral. O amor entre os homens deveria ser uma coisa absoluta. Deveríamos poder olhar-nos e amar-nos, sem recordar a um terceiro no céu. O cristianismo, parece-me, faz com que a moralidade se apresente como coisa desnecessariamente difícil e complicada, e o pecado como coisa tentadora, natural e desejável. Em compensação, só o paganismo é que parece capaz de resgatar a religião da teologia e restaurá-la na sua formosa singeleza de crença de sentimento.
Estou a ver quantas complicações teológicas surgiram nos séculos I, II e III e converteram as simples verdades do Sermão da Montanha numa estrutura rígida, total, para sustentar um conjunto de sacerdotes. Tudo isto, explica-o a palavra revelação – a revelação de um mistério especial ou de um plano divino, feito a um profeta e mantida por uma sucessão apostólica, que se considerou necessária em todas as religiões, desde o maometismo e o mormonismo até o lamaísmo do Buda Vivo e Christian Science da Sra. Eddy, a fim de que cada um deles manejasse um monopólio patenteado de salvação. Todos os sacerdotes vivem da comida comum da revelação. As singelas verdades dos ensinamentos de Cristo na Montanha devem ser adornadas e os lírios que tanto o encantaram devem ser devidamente dourados. Por isso temos o “primeiro Adão” e o “segundo Adão”, e assim com tudo o mais.
Mas a lógica Paulina que parecia tão convincente e indiscutível nos primeiros dias da era cristã, parece débil e nada convincente nesta discrepância entre a rigorosa lógica dedutiva asiática e a mais flexível, mais sutil apreciação da verdade do homem moderno, reside a debilidade do atrativo da revelação cristã, ou qualquer outra, para o homem moderno. Portanto, só com o retorno ao paganismo e a renúncia à revelação pode a gente voltar ao cristianismo primitivo, para mim mais satisfatório.
Não está bem, pois, falar de um pagão como de um homem irreligioso; somente é irreligioso por se negar a crer numa variedade espacial da revelação. Um pagão crê sempre em Deus, mas não lhe agrada dizê-lo, por temos a que não o compreendam. Todos os pagãos chineses creem em Deus, e a designação mais comum que se lhe dá na literatura chinesa é o termo Chaowu, ou seja, o Criador das Coisas. A única diferença é que o pagão chinês é tão honesto que deixa o Criador das Coisas em um halo de mistério e sente por Ele uma espécie de pasmada piedade e veneração. E, o que é mais, este sentimento lhe basta. Tem conhecimento também da beleza deste universo, da estesia das mil coisas desta criação, do das estrelas, da grandeza do céu, da dignidade da alma humana. Mas também isto lhe basta. Aceita a morte como aceita o sofrimento, e pesa-os contra o dom da vida e da fresca brisa do campo e da clara lua da montanha, e não se queixa. Considera que dobrar-se ante a vontade do céu é a atitude verdadeiramente religiosa e pia, e chama-a “viver no Tao.” Se o Criador das Coisas quer que ele morra aos setenta e sete anos, morre contente aos setenta e sete anos. Crê também que o “Caminho do céu sempre dá uma volta”, e que não há uma injustiça permanente no mundo. Não pede mais.