witch lady

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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

DIREITOS SOBRE O CORPO








Eu acredito ser um espírito que, de alguma maneira, está no comando de um corpo – como um motorista está no comando de um carro. Eu não sou meu corpo, mas nós interagimos e precisamos um do outro para que a vida orgânica seja mantida e a vida anímica possa ser expressada neste plano. Não posso provar nada disso em que eu acredito, e até hoje, não encontrei ninguém que pudesse prova-lo para mim, mas é nisto que eu acredito porque é o que faz sentido para mim. Eu acho que quando eu morrer, minha alma vai deixar este corpo e ir para algum outro lugar – conscientemente ou não. E o meu corpo será destruído. Apodrecerá. Ou seja: deixará de ter importância.

Mesmo assim, o que eu faço ao meu corpo enquanto viva neste plano, tem um efeito sobre a minha alma, pois eles estão interligados. Eu posso optar por cobri-lo de tatuagens. Posso castigá-lo com chicotes até sangrar, achando que assim estarei me redimindo de meus pecados. Posso sair por aí e dormir com qualquer pessoa que eu encontrar, levar uma vida promíscua e descuidada. Posso beber até cair, me encher de drogas alucinógenas, pintar os cabelos de rosa ou de azul, ou raspar a cabeça, colocar piercings no nariz, nas orelhas, no umbigo e em outros lugares menos aparentes. Posso comer sem controle e engordar, ou então enfiar o dedo na garganta após comer, e vomitar até a exaustão. Posso optar por submetê-lo a um sádico e fingir que a dor me causa prazer sexual – afinal, está na moda.

Não sou religiosa, não sigo nenhuma religião e meu conceito sobre Deus é tão diferente do que as pessoas religiosas pensam, que prefiro nem discuti-lo. Mas eu acho que o corpo é sagrado. É através dele que eu expresso a minha alma. O corpo é a casa da minha alma. Portanto, apesar de eu ser livre para fazer com ele o que eu bem entender sem qualquer limite, há coisas que eu não devo fazer. Não é uma boa ideia cuidar mal do corpo, pois quem está vivo, quer que ele dure e seja produtivo durante um período longo.

Tenho cinquenta anos de idade, e não tive filhos por opção. Poderia ter tido, se quisesse, mas eu não quis. Nunca me senti inclinada a ser mãe. Prefiro ter cães. Nada tenho contra crianças ou contra quem optou por tê-las, mas eu preferi não tê-las. Por isso, eu tomei pílulas a vida toda: porque eu queria evitar uma gravidez indesejada. Mesmo assim, aos 38 anos de idade, o inesperado aconteceu: eu me vi grávida. Apesar do susto que eu levei, abortar nem me passou pela cabeça, porque havia um outro corpo dentro do meu corpo, uma outra vida que não me pertencia, não era eu e nem era minha, não vinha de mim. Era um outro espírito que queria manifestar-se e nascer para este mundo. A gravidez não foi adiante; apenas algumas semanas depois, sofri um aborto espontâneo. Não sou de chorar ou me lamentar pelo que não é para ser: aceitei e segui em frente. Aconteceu o que era para ter acontecido, e pronto, e não sei explicar porque. Mas aquela criança poderia ter nascido através de mim.

As mulheres hoje em dia falam em liberdade sexual e direitos sobre o próprio corpo. Concordo com elas: todo mundo tem direito a fazer o que bem entender com o próprio corpo, embora esta liberdade deva ser usada com responsabilidade. Mas quando se trata do direito de engravidar e abortar, essa tal liberdade deixa de pertencer apenas a quem traz um embrião no ventre: é uma outra vida, e assim como a mulher acha que tem direitos sobre o próprio corpo, esta outra vida também deveria ter. Se toda liberdade fosse digna, então não poderíamos censurar um estuprador por estar fazendo apenas o que ele deseja através do seu próprio corpo, ou seja, conseguir um pouco de prazer sexual. Mas esperem: já posso ouvir as mulheres liberadas gritando:

-Mas isso é um absurdo! O estuprador é alguém que força outra  pessoa a fazer sexo com ele contra a própria vontade! Ele está invadindo um espaço que não é dele, e fazendo uso de um direito que não lhe pertence! Ninguém deve dispor da vida de outra pessoa desta maneira!

Concordo. E justamente por concordar, sou contra o aborto. Vejo o aborto como um caso de estupro, onde uma vida sobrepuja outra e faz dela o que bem quiser sem que esta tenha o direito ou o poder de defender-se. Mas acho que estou ouvindo novamente o grito das mulheres liberadas:

-Mas se o aborto não for legalizado, milhares de mulheres continuarão a morrer nas mãos de médicos carniceiros!

Eu respondo: Mãos a que elas se submetem de livre e espontânea vontade, já que estão exercendo o seu direito de fazer do próprio corpo o que bem entendem! Mas se a polêmica sobre o aborto é apenas esta – livrar as mulheres liberadas que querem fazer do próprio corpo aquilo que bem entendem sem que elas corram risco de vida – não seria bem menos arriscado e bem mais aconselhável e sensato tomar a pílula anticoncepcional e/ou usar camisinha? E de onde vem a responsabilidade de uma mulher que sofre uma gravidez indesejada nesses tempos de AIDS? Por que ela não se protegeu? Por que ela não fez sexo seguro? 

Porque ela é uma irresponsável, que clama por uma liberdade para a qual não está preparada. Ela grita por direitos que ela própria não compreende e não sabe utilizar. Ela se arrisca a ter uma gravidez indesejada e até à morte ao fazer sexo sem proteção, podendo inclusive ser responsável por espalhar uma doença mortal entre seus parceiros, mas não quer se arriscar a fazer um aborto em uma clínica clandestina; quer ter o direito de fazer abortos em hospital público – como se estes estivessem em excelentes condições de recebe-las, ao invés de receber quem realmente precisa deles: centenas de milhares de pessoas com problemas de saúde REAIS.

A estas mulheres liberadas, eu tenho o seguinte a dizer: cresçam e amadureçam. E usem camisinha. 






Do Quintal









TE OLHO

Te Olho







Te olho, assim, só de soslaio,
De um microscópio - vejo o ranço,
O triste habitat de um micróbio,
Os pelos verdes de um pão mofoso,
Vejo uma ameba, a nadar na profusão
Nas águas de um mar gelatinoso.

Te olho por curiosidade,
(O bizarro sempre me distrai)
Como quem vai a um show de horrores,
De humor indiferente e jocoso,
Num circo decadente , em tarde de domingo,
Só para fugir de um dia chuvoso.

Te olho, pois bateste à minha porta,
Ornada em paetês, cetins e plumas,
Macramés, brilhos, rapapés,
Desarrumadamente torta,
Na face, um par de olhos mortos
E os dedos nodosos, apontando
As unhas sujas para o meu rosto.

Te olho, pois és um bom exemplo
De tudo o que penso ser medíocre,
E tua insignificância me fascina.
Não sei se o nosso desafeto
É destino, carma, doença ou sina,
Mas te vejo como uma latrina
Na qual despejo meus dejetos.




"Não me peça que eu lhe faça
Uma canção como se deve
Correta, branca, suave
Muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas
E eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém." - Belchior






terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

CHIMERA








She danced in ataxia,
Involved by chimera
Of things she invented
About her fake life...

She looked in the mirror
And saw a strange queen
Whose crown was suspended
Above her bald head...

If only instead
Of making up lies
She could find a reason
To be what she's like!

Oh, what a false world,
Oh, what a false life!
Her ego so huge,
She could not see light!





Não Voltar Para Casa







Acabo de deixar minha aluna no portão, após o término da aula. Hoje de manhã recebi a notícia de que um de meus vizinhos - um senhor idoso que estava muito doente - acabara de falecer.  Apesar de não termos muito contato, nas poucas vezes em que conversei com ele durante estes mais de onze anos que moro nesta rua, pude perceber que se tratava de alguém educado e gentil. 

A casa fica do outro lado da rua, a alguns metros da minha, e pude vê-la do meu portão. Vi as portas e janelas fechadas. Nunca mais ele vai voltar para casa.

Imaginei a solidão por dentro daquelas paredes: os seus objetos favoritos, a poltrona que ainda guarda o formato do seu corpo, as roupas penduradas no cabide - roupas que ele não mais vestirá, as coisas deixadas do jeitinho que ele as arrumou pela última vez, os cantinhos preferidos, os espelhos que tantas vezes refletiram a imagem dele. 

Lembrei-me do que senti quando eu caminhei pela casa pela primeira vez, após a morte do meu pai: acabáramos de voltar do enterro, e a primeira coisa que vi quando abri a porta da cozinha que dava para a área de serviço, foi uma camisa dele que era usada para ficar em casa, displicentemente jogada sobre o varal de roupas. Acho que ele a deixara ali naquela manhã, antes de sair. Sobre a mesa da cozinha, um pacote de biscoitos que ele comprara. No quarto, sob a cadeira, os sapatos com as meias ainda dentro. É difícil caminhar por uma casa quando um dos moradores acabou de morrer.

Da mesma forma, entrar no quarto que pertenceu à minha mãe e sentir ainda o cheiro dela, ver suas roupas todas muito arrumadinhas nas gavetas e armários, mexer nos livros cheios de anotações, números de telefone, endereços, fotografias e flores secas... não foi nada fácil.

E depois, fica sempre aquela pergunta aguda e dolorosa, que ninguém pode responder.




segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

A Casa da Mãe

imagem: Google






Eu e meus irmãos nascemos e crescemos naquela casinha de dois quartos, pelas mãos da parteira Dona Maria Carioca.  A casa era pequena, e precisávamos dividir um único quarto e a sala na hora de dormir, pois o segundo quarto pertencia aos nossos pais. O quarto que partilhávamos era também conhecido como 'quarto do vovô', pois quando ele chegava de suas viagens para nos visitar, nós tínhamos que nos amontoar na sala e ceder-lhe o quarto. Foi assim durante muitos e muitos anos.

Tínhamos um pequeno quintal onde meus pais cultivavam algumas plantas decorativas e também legumes. Por lá, caminhavam livres muitos cães, gatos, galinhas, porquinhos da índia e certa vez, patos. Havia muitas árvores frutíferas: dois abacateiros, um figueiro, um pessegueiro, dois pés de limão galego, uma ameixeira, muitas bananeiras, e às vezes, abóboras, alface couve e tomate. Quando as abóboras do meu pai se derramavam pelo chão, mal havia espaço para pisarmos, e por isso, eles deixaram de plantar abóboras. 

Era um quintal simples, de terra batida. Por ali passaram muitos amigos, e em volta daquela casa, fazendo nossos bolinhos de terra e pintando as unhas com pétalas de flores, nós crescemos. Conforme meus irmãos iam casando e mudando, a casa ia ficando maior. Até que finalmente, meu grande sonho se realizou: ter o meu próprio quarto. E logo depois, descobri que ter o próprio quarto nem era tão bom assim, talvez porque aquilo aconteceu em uma época de pouca saúde para meu pai. Ele morreu quando eu tinha 22 anos, e eu e minha mãe ainda ficamos alguns anos morando sozinhas na casa, até que ela foi morar com uma de minhas irmãs e eu me casei.

Hoje a casa é ocupada por outra de minhas irmãs.

Já falei e escrevi muitas vezes sobre esta casa, e acho que ainda o farei durante muito tempo - quem sabe, pelo resto da vida. A casa da mãe é um lugar que a gente não abandona, nem mesmo quando casamos e vamos embora, pois a levamos conosco. E todas as experiências boas e ruins que lá tivemos também passam a fazer parte das nossas vidas de aultos, não importa quantos anos tenhamos.
Aquela casa foi um presente de nosso avô, que os pais dele compraram quando vieram da Itália, através da renda das frutas e legumes que vendiam de porta em porta.

 Minha mãe contava que quando ela se casou e foi morar lá, quase não havia nada em volta, nem outras casas e nem vizinhos. A rua não era calçada, não tinha ônibus, quase não passavam carros. Só havia muito mato e muitas árvores, e ela se sentia muito sozinha, até que aos poucos, outras casas foram sendo construídas em volta da nossa. Alguém colocou luzes e paralelepípedos nas ruas, e os ônibus começaram a passar. 

Uma das  boas lembranças que trago daquela casa e daquele bairro são os vizinhos e amigos com quem nos relacionávamos diariamente. As crianças brincavam na rua depois da escola. Nós brincávamos de bola, de fazer cabanas de bambú, de guerra de lama e de mamona (naquela época ninguém sabia que as mamonas eram plantas venenosas, e quem sabe, a inocência nos tenha salvo?) e também de pique-esconde, passa-anel, e outras brincadeiras que as crianças de hoje nem sequer ouviram falar. No domingo de manhã a gente se reunia para falar do filme que passara na Primeira Exibição na noite de sábado. Geralmente, o filme ficava sendo anunciado várias vezes diarimente durante mais de uma semana antes de ser exibido, e isso criava uma enorme expectativa na gente. Ainda me lembro de "O Grito do Lobo", um filme de terror que me rendeu um conto de humor publicado neste blog em 2012.

As coisas eram mais intensas, mais esperadas e desejadas. Não havia preocupações com a decoração das casas - elas tinham que ter o necessário para que fossem limpas e funcionais, e isso era tudo. Os espaços comuns eram partilhados sem muita preocupação sobre mantê-los arrumados, e privacidade era algo que se tinha durante alguns minutinhos por dia, quando se entrava no banheiro. Dividíamos os quartos, os armários, a mesa da cozinha, as histórias, os gibis, as rusgas, os brinquedos, os doces que comprávamos no bar da esquina, a garrafa de Coca-Cola. Tudo era mais 'desencanado.'  Ninguém fazia dramas sobre os acontecimentos da vida - mortes, mudanças, doenças. Tudo era o que tinha que ser, e a gente simplesmente aceitava tudo como era. As pessoas não choravam muito, e ninguém jamais ouvia falar em coisas como depressão e psicólogos. Resolvíamos nossos próprios problemas, ou então, deixávamos que se resolvessem sozinhos. 

A casa da mãe era o ponto de referência para onde todo mundo voltava no domingo, após a semana de trabalho. O nosso centro. Na verdade, acho que nem era bem a casa da mãe, mas sim, a mãe. A própria mãe. Nenhuma família continua a mesma depois que  mãe morre.



A SOMBRA E O INIMIGO







Trecho do livro "Ao Encontro da Sombra" - Pensamentos de vários autores, organizados e discutidos por Connie Zweig e Jeremiah Abrahms


....
O Filho de um rabino foi celebrar os ritos do Shabbat numa cidade vizinha. À sua volta, a família perguntou:
-Eles fizeram algo diferente do que fazemos aqui?
-Sim, é claro, -respondeu o filho.
-E qual foi a lição? - perguntaram.
-"Ama o teu inimigo como a ti mesmo."
-Mas isso é o que dizemos aqui. Por que disseste que era diferente?
-Eles me ensinaram a amar o inimigo dentro de mim mesmo.



Amar o inimigo dentro de nós mesmos não elimina o inimigo lá fora, mas pode mudar o nosso relacionamento com ele. Quando o mal deixa de ser demonizado, somos forçados a lidar com ele em termos humanos. Essa é, a um só tempo, uma tarefa espiritual potencialmente dolorosa e uma oportunidade para a paz espiritual. Esse é sempre o caminho da humildade.

O coração das trevas é o nosso próprio coração. Existe um certo consolo em demonizar as pessoas mais monstruosas e perniciosas dentre nós, como se o fato de elas serem um tipo diferente de criatura tornasse o seu exemplo irrelevante para nós. Por isso um alemão escreveu que todas as tentativas para entender o caráter do nazista Heirich Himmler estavam fadadas ao fracasso, "pois implicam compreendermos um louco, em termos da experiência humana." Mais sábio foi o jornalista alemão que lembrou aos seus compatriotas: "Sabíamos que Hitler era um de nós desde o começo. Não deveremos esquecer isso agora." Ele também era um de nós, um ser humano. Na dança do espelho, econtramos a falsa paz interior ao demonizar o inimigo. Mas reconhecer que até mesmo um inimigo realmente demoníaco é feito da mesma substância que nós faz parte do verdadeiro caminho em direção à paz.




Nossa cisão interior faz com que nos apeguemos à guerra do bem contra o mal. Mas se sustentarmos que o recurso da guerra é, em si, o mal, então somos desafiados a encontrar uma nova dinâmica moral que represente a paz pela qual lutamos . Na medida em que a moralidade toma a forma da  guerra, seremos compelidos a escolher um lado, a nos identificar com uma parte de nós mesmos e repudiar a outra. Esse caminho da guerra faz com que nos elevemos acima de nós mesmos, precariamente equilibrados sobre um abismo.

No nosso mundo, os "fazedores da paz" frequentemente compartilham com os "fazedores da guerra" esse paradigma fundamental da moralidade. Nossos movimentos pacifistas demonizam os guerreiros como amantes da bomba, enquanto "nós" somos as boas pessoas que querem a paz: como se os guerreiros também não estivessem nos protegendo contra  perigos muito reais, e como se nós, amantes da paz, não tivéssemos a nossa própria necessidade de afirmar  a nossa superioridade sobre os 'inimigos' que escolhemos. O recurso da guerra continua a dar as cartas, mesmo sob a bandeira da paz.




Em Gandhi's Truth (A Verdade Sobre Gandhi), Erik Erikson lança luz sobre alguns dos perigos do caminho em direção à paz. Gandhi é um herói do movimento ideológico do nosso século para transcender o sistema da violência - e, muito apropriadamente, merece toda a admiração que recebe; o livro de Erikson é, em si, um tributo: Gandhi, de tanga, representando a simplicidade do espírito; Gandhi ensinando-nos a não demonizar nossos adversários mas a apelar para o melhor lado deles; Gandhi mostrando como deter o ciclo de escalada da violência através de uma corajosa disposição para absorver o golpe sem devolvê-lo. 

Mas existe um lado problemático em Gandhi; Erikson a ele se refere numa carta aberta ao Mahatma. Essa dimensão escura é derivada do excesso de zelo de Gandhi na sua luta por perfeição moral. Erikson vê, no relacionamento de Gandhi consigo mesmo, uma espécie de violência. E também percebe que nessa dinâmica desse esforço para triunfar sobre si mesmo no recurso da guerra, cresceram relações tirânicas e exploradoras entre Gandhi e as pessoas que lhe eram mais próximas e mais vulneráveis a ele. Erikson identifica, na própria luta de Gandhi pela santidade, as dificuldades que nos ligam ao caminho da violência.




O caminho da não-violência (Satyagraha), diz Erikson a Gandhi em sua carta aberta, "terá pouca chance de encontrar sua relevância universal, a menos que aprendamos a aplicá-lo também a qualquer coisa má que possamos sentir dentro de nós mesmos e que nos faça temer  a satisfação dos instintos, sem a qual o homem não só fenece enquanto ser sensual como também se transforma numa criatura duplamente perniciosa." Em lugar de destaque nesse argumento de Erikson, figura  a guerra de Gandhi contra a sua própria sexualidade, uma guerra na qual a projeção também teve um papel a desempenhar e que trouxe, como consequência parcial, o sofrimento de outras pessoas. Vale lembrar as restriçoes de George Orwell quanto ao exemplo de Gandhi: "Não há dúvida de que álcool, tabaco, etc., são coisas que um santo deve evitar, mas a santidade também é uma coisa que os seres humanos devem evitar." A santidade involve uma extrema identificação com a parte "boa" enquanto irreconciliavelmente oposta à parte "má." Ela se liga à via de guerra: "Grande parte desse excesso de violência que distingue os homens dos animais", continua Erikson, falando de Gandhi, "é criado nele por esses métodos de treinamento infantil que lançam uma parte dele contra a outra."




Talvez exista uma outra via. A bondade pode ser reconhecida como saúde. A raiz linguística inglesa de health (saúde) está ligada a whole (total, íntegro). Portanto, o mal é doença - queremos ser curados, totalizados e não destruídos no caminho do "fazedor de guerra". Ao nos totalizarmos, encontramos  o caminho para a bondade da paz, para a qualidade do shalom (paz, em hebraico). E no seu âmago, vem a paz com o nosso ser, criaturas imperfeitas e pecadoras que somos. Erich Neumann fala da "coragem moral de não desejarmos ser piores nem melhores do que realmente somos." Essa, diz Neumann, é a parte mais importante do objetivo terapêutico das psicologias de profundidade. E, de modo semelhante, Erikson escreveu ao Mahatma Gandhi sugerindo que se acrescentasse ao caminho do Satygraha o encontro terapêutico consigo emsmo, conforme é ensinado pelo método psicanalítico.  Os dosi caminhos estão relacuionados, diz Erikson, porque a psicanálise ensina a "confrontar o inimigo interior de uma maneira não violenta..." O recurso da guerra, que divide, é aqui suplantado pelo recurso da reconciliação, que totaliza.





A bondade reinará no mundo, não quando ela triunfar sobre o mal, mas quando o nosso amor por ela deixar de se expressar em termos de triunfo sobre o mal. A paz, se um dia vier, não será feita por pessoas que se fizeram santas, mas por pessoas que aceitaram humildemente sua condição de pecadores. Na verdade, foi uma santa - Santa Teresa de Lisieux - quem expressou o que é preciso para permitirmos que o espírito da paz resida em nossos corações:

 "SE ESTIVERES PREPARADO SERENAMENTE PARA SUPORTAR A PROVAÇÃO DE SERES FONTE DE DESGOSTO PARA TI MESMO, ENTÃO SERÁS UM AGRADÁVEL ABRIGO PARA JESUS."





Haverá diferença entre o sim e o não?
Haverá diferença entre o bem e o mal?
Deverei temer o que os outros temem? Contrasenso!
O ter e o não ter surgem juntos.
O fácil e o difícil se complementam.
O longo e o curto se contrsastam.
O alto e o baixo dependem um do outro.
Frente e costas, uma à outra se seguem.

Lao Tsé






ESPAÇO




Abrir os braços ao vento,
Tentar reter o espaço
Entre as fibras dos cabelos...

A pausa ficou no meio
Da viagem, do abraço,
Da tessitura dos medos.

E tudo era tão imenso,
Os voos, o azul profundo
Misturados no horizonte!

Muitas águas, muitas fontes,
Mas a porção permitida
Nas mãos em concha, contida.



Poema inspirado na figura abaixo - imagem retirada do Google






quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

OS SERES DE LUZ







Há muito tempo escutei falar dos seres de luz pela primeira vez. Eram pessoas místicas, aparentemente divididos entre este mundo e o outro, engajados nos movimentos da Nova Era e servindo de canalizadores para mensageiros espirituais que aconselhavam e iluminavam o mundo e suas trevas. Eram inofensivos. Reuniam-se em grupos e dançavam aos seus deuses e deusas, mantendo no rosto o ar piedoso e compreensivo de quem vive a dizer, “Eu sei de coisas que você não sabe,” e está disposto a esclarecer e elevar os demais.

Aos poucos, os seres de luz foram passando por algumas transformações, e seus dons espirituais cheios de bondade e abnegação passaram a fundar seitas que sequestravam e escravizavam adolescentes. Todo mundo já ouviu histórias sobre suicídio coletivo, casos de estupro e outros absurdos que aconteciam nestas comunidades. Devido a tais fatos, os seres de luz perderam força em meados dos anos 80. 

Até o advento da internet, que os trouxe de volta, espalhados em blogs e sites, pretendendo iluminar, educar, encantar, e esclarecer aqueles internautas que ainda vivem no mundo da escuridão e da falta de amor. Já fui abordada (primeiro, gentilmente; depois, como não lhes desse ouvidos, de forma incisiva e deseducada) por alguns desses seres de luz. E o que eu tenho a dizer a respeito deles, é que sua luz brilha tanto, e é tão forte, que cega a todos em volta – a começar por eles mesmos. Eles me falaram da minha falta de caráter e da minha resistência em abrir meu coração para deixar a luz entrar. Eles me xingaram, me rebaixaram, escreveram coisas a meu respeito e depois me mandaram e-mails que, segundo eles, tentavam trazer à minha alma ‘um pouco de iluminação.’  E como eu me recusasse a ceder aos seus encantos luminosos, despediram-se com impropérios, pragas que deixariam as do Egito em posição desvantajosa e desejos de que eu e meus entes queridos morrêssemos. 

Bem, eu não morri. Pelo menos, ainda não. Sinal de que eles podem até ser iluminados, mas não tem tanta força assim. Mas já vi alguns deles se regozijando por aí às custas do sofrimento e da morte alheias, como se Deus existisse apenas para eles e agisse apenas a fim de castigar seus desafetos. E mesmo assim, eles se reafirmam como seres iluminados, dotados de dons especiais de amor e bondade, sabedores e propagadores da verdade. Chegam a colecionar as homenagens que lhes são feitas, numa tentativa de reafirmar sua superioridade sobre os seres escurecidos.

Hoje, toda vez que ouço alguém comentando: “Fulano é um ser de luz,” ou “Sicrano é iluminado,” eu sinto arrepios percorrendo a minha espinha e ânsias de vômito. Também sinto uma vontade muito grande de correr para bem longe desses seres de luz, e mergulho bem fundo no meu pequeno poço de escuridão, onde espero, eles não me encontrem.




My Love







My love for you
Is not insane,
Or mostly immense.
It doesn't break the limits
Of my good sense.

My love for you
Is something simple,
Without derision,
Unsympathetic 
But not demanding.

My love is real,
And has survived
Under the limits
Of limitations,
With little sparks
Of infatuation.

And if you ever
Doubt that it's real,
I'll close my eyes,
And I'll say nothing
To reassure you
Of how I feel.






AMARGA








Era a cena de um filme na TV – A Praia do Futuro, com o nosso Wagner Moura. Na cena em questão, um rapaz bem jovem – que no filme interpreta o irmão mais novo do personagem de Wagner Moura – pega uma motocicleta sem autorização do proprietário e sai pelas ruas da Alemanha. Vai parar em uma boate, onde , na cena seguinte, ele está dançando com uma estranha a quem ele beija na boca, enquanto bebe e fuma (e o local sugere o consumo de outras coisitas mais...). A cena me deixou triste, com um sentimento de vazio. Comentei: “Que coisa vazia!”


Pensei nas centenas de pessoas que se “divertem” daquela forma hoje em dia: dançando, em transe, ao som de música extremamente alta e repetitiva, as batidas compassadas funcionando como as batidas de um martelo sobre uma bigorna, os organismos regados a energéticos com bebidas alcoólicas e drogas. A música é o que menos importa. Ninguém está ali para ouvir música, mas para exorcizar seus demônios (ou para invocá-los). Impossível conversar e conhecer alguém em um ambiente assim. Me lembrei que quando eu tinha aquela idade, a gente dançava diferente. Pulávamos, fazíamos passos sincronizados, nos divertíamos... e se bebêssemos, seria apenas uns golinhos para ficarmos mais ‘alegres.’
Sem perder o senso. As músicas que escutávamos tinham letras.


A cena continua, e os dois terminam encostados a um muro em uma parte deserta da cidade, onde transam. Minha sensação de vazio aumentou. Na cena, chega o dono da motocicleta e leva o menino com ele, deixando a menina sozinha, de madrugada, em uma parte deserta da cidade, a fim de encontrar o caminho de casa sozinha.

Ao meu comentário (Que coisa vazia!), responderam: “Você está amarga! Eles só estão se divertindo.”


É. Eu estou amarga. Porque quando eu olho para fora, pela minha janela, as coisas que eu vejo me deixam assim. Não é falso moralismo, nunca fui moralista na minha vida, mas há coisas demais acontecendo e eu sinto que não estou conseguindo acompanhar a lógica de todas elas. Atrasada demais para os novos tempos? Eu às vezes me pergunto se essa coisa que eu sinto se chama evolução ou involução; afinal, não estou acompanhando o que a maioria chama de evolução, e por isso, sou considerada amarga. Não consigo aceitar algumas coisas que tentam me empurrar garganta abaixo.


Que cada um seja feliz à sua maneira, mas eu me pergunto se essa gente é feliz mesmo. Afinal, o que é felicidade? É essa coisa psicodélica, drogada, superficial e barulhenta, essa mania de não pensar muito em nada, mas seguir o que a maioria está fazendo sem discernir se é bom ou verdadeiro? Ser feliz é não olhar jamais para dentro de si mesmo, a fim de não ver e nem escutar quando os corações sangram? Ser feliz é entrar na passeata para simplesmente conseguir boas fotografias para colocar na rede social? É encher a cara até vomitar? Porque se for, então eu não quero ser feliz; se for, eu então sou amarga, a mais amarga e retrógrada das pessoas.




terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Estar em Casa








Acordo cedo, com os primeiros raios de sol entrando pelas frestas das cortinas. Apesar do verão absurdamente quente que temos tido, as noites em Petrópolis são sempre frescas, e ainda sinto na pele o friozinho que me cobriu de madrugada.

Levanto da cama, desço as escadas e começo a abrir as portas e janelas da casa. Os primeiros passarinhos já estão pousados nos galhos do cedro, aguardando que eu abasteça seus comedouros. Meus cães saem correndo felizes jardim afora, assim que eu abro o portão do canil. De repente, Mootley - meu Cocker Spaniel - volta correndo, pega um brinquedinho com a boca e dá um pulo sobre mim, como se de repente se lembrasse de me dizer bom dia. E parte para brincar com a Leona, que o espera lá fora.

Estou em casa. Ajeito as almofadas no sofá da sala, preparo o café da amnhã e fico contente por poder desfrutar destes momentos sozinha, enquanto meu marido ainda dorme lá em cima. Acendo uma vareta de incenso, perfumo a casa, olho as plantinhas nos vasos para ver se precisam de rega. Abro a geladeira e começo a pensar em algo para o almoço. Lá fora, meus sinos de vento cantam, pendurados na varanda.

Para mim, estar em casa me passa aquela sensação de segurança - que mesmo sendo falsa, é agradável. Ninguém está seguro em lugar nenhum hoje em dia... ou talvez estejamos, quem sabe... mesmo quando caminhando pela beira do abismo ou enfrentando perigos, eu às vezes penso que não importa o que me aconteça: estarei bem.

Vai ficar tudo bem.

Certa vez, contei quantas vezes escutei esta frase durante uma semana, ao assistir à TV. Por coincidência, "Vai Ficar Tudo Bem" é o título de um de meus livros de poemas. Quando a personagem de um filme a disse pela primeira vez, achei normal, até que a frase começou a repetir-se, e repetir-se... ao final do dia, já a tinha ouvido quatro vezes. E continuei a ouví-la durante a semana, mas perdi a conta de quantas vezes.

E acho que vai sim, vai ficar tudo bem. Porque eu estou em casa. Estou aqui, entre as coisas que eu amo, das quais me cerquei, e que foram escolhidas a dedo por nós especialmente para ocupar este espaço. Aqui estão meus livros e discos, fotografias, objetos, cores, sabores e perfumes. Aqui está o homem que eu amo, e meus animais de estimação. Para onde quer que eu vá, eu levarei tudo comigo na memória do coração.





segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

B B B






Muitos criticam não apenas o Big Brother Brasil e a TV Globo, mas também a todos que assistem o programa ou à emissora. Hoje em dia, assistir ao BBB é sinônimo de burrice – ainda assim, é incrível que os críticos mais ferrenhos saibam de tudo o que acontece no programa, inclusive os nomes dos participantes.

Acredito que todo ano, durante três meses, as orelhas de Pedro Bial fiquem vermelhas e ardidas, devido ao grande número de críticas e ofensas que ele recebe. Mas só se estabelece quem tem competência para lidar com esse tipo de coisa, e eu não tenho dúvida alguma quanto à competência e a inteligência deste renomado jornalista e apresentador.

Eu não tenho o menor problema em dizer que assisto ao BBB, e declaro que não me tornei ignorante ou inteligente por causa disso. Também não me envergonho, pois o que eu assisto ou deixo de assistir na TV, ou o que eu faço em minhas horas vagas só diz respeito a mim.

Acredito que um simples programa de TV, cujo formato é interessante, mas precisa adaptar-se aos gostos do povo para dar audiência (e o povo gosta de bandalheira), não tem tanta influência assim sobre o intelecto de ninguém. Pelo contrário; quem se deixa influenciar pelo que assiste na TV, lê na internet ou escuta no rádio, sem parar para pensar e analisar um pouquinho, não tem intelecto para ser corrompido.

Mas há muitas falhas no programa, e em sua décima sexta edição, os organizadores tentaram reparar uma delas, colocando pessoas de idades variadas, não apenas jovens e bonitas, mas também idosas, comuns ou feias, algumas delas com doutorado e curso de terceiro grau. Mas o que será que acontece quando as pessoas cruzam os portais do BBB? Logo após a primeira semana e o primeiro paredão, elas tornam-se embotadas; não falam de mais nada, a não ser de eliminação, voto, estratégia de jogo e fofocas sobre os outros participantes.

Dizem que cabeça vazia é oficina do diabo, e este programa está aí para provar este velho ditado. Acho que seria bem mais interessante se a direção criasse temas ou tópicos a serem desenvolvidos e debatidos pelos participantes; explico melhor a minha ideia: a cada dia, um dos participantes ou uma dupla receberia como tarefa organizar um debate sobre determinado tópico – que poderia ser sugerido pela direção do programa ou pelos expectadores. Assim, todos saberiam melhor o que vai na cabeça de cada um, e a capacidade de liderança de cada participante ficaria mais óbvia. O mediador – ou mediadores do dia teriam que bolar perguntas sobre, por exemplo, a educação no país, relacionamento, a escolha de uma profissão, sexo, drogas ou rock and roll, quem sabe; à noite e ao vivo, ele/eles liderariam uma espécie de programa de entrevista, convidando os outros participantes a darem suas opiniões sobre os assuntos propostos. Acho que assim ficaria bem mais interessante, e os telespectadores poderiam ter uma participação mais ativa ao sugerirem os tópicos, e não apenas votando nas eliminações. 

O programa não é de todo ruim. É interessante observar o comportamento das pessoas quando sob pressão, e descobrir que ninguém é tão bom ou tão ruim quanto parece.





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