Texto inspirado nas dificuldades e diferenças linguísticas entre o português falado no Brasil e o português falado em Portugal.
Entramos naquele restaurante maravilhoso – eu e meu amigo português. Uma garçonete mal-humorada aproximou-se de nossa mesa, estendendo-me o cardápio. Dentre tantas variedades de pratos, achei melhor que ela sugerisse alguma coisa. Franzindo o cenho, ela respondeu:
- Sugiro a punheta.
Olhei-a, sem acreditar no que acabara de ouvir! Meu amigo permanecia impassível, olhando o cardápio. Tentando não criar um caso, decidi:
-Vou comer uma bacalhoada.
Enquanto isso, meu amigo decidiu:
- De entrada, traga-nos cacetes amanteigados. Para beber, um sumo de laranja. Eu vou ficar com a punheta.
Aos berros, a garçonete faz o pedido:
-Dois cacetes amanteigados e sumo de laranja para a mesa oito! Uma bacalhoada e uma punheta!
Senti-me corar. Meu amigo percebeu, e achando que eu estava chocada pela maneira escandalosa da garçonete, ele comentou, rindo:
-Não te preocupes! Ela deve estar com histórias... com licença, vou ali cumprimentar meu amigo banheiro um minutinho e já volto.
Enquanto eu esperava a refeição, o celular do homem na mesa à esquerda tocou, e ao atendê-lo, ele disse: “Está lá?”
Naquele momento, entra no restaurante um grupo de crianças barulhentas, acompanhadas dos avós, supus, e o homem ao telefone diz:
-Como? O que disseste? Fala mais alto, pois acaba de adentrar uns canalhas barulhentos!
Fiquei escandalizada pela maneira como ele se referiu às crianças. Meu amigo voltou, e não querendo ser indiscreta, não comentei o assunto. Fizemos nossa refeição, que estava deliciosa, e chamando a garçonete, meu amigo pediu duas bicas. Também perguntou-lhe se ela sabia aonde ficava a paragem de autocarro mais próxima, o que ela nos informou entre grunhidos.
Deixamos o restaurante. Meu amigo perguntou-me se eu não gostaria de olhar as montras, e sem graça, eu respondi que não (não tinha a menor ideia sobre o que ele estava sugerindo que eu olhasse). Então, ele pediu-me licença, dizendo que precisava ir comprar fita-cola para sua esposa, e eu sorri, pois sabia exatamente o que aquilo significava. Orgulhosa pela minha inteligência, afirmei, caprichando no sotaque de Portugal:
-Entendi! Vais comprar durex!
Meu amigo me olhou como se eu fosse de outro planeta, corando muito, e respondeu-me:
-Não! Já disse, vou comprar fita-cola! Enquanto isso, fique lá naquela bicha a guardar nosso lugar!
Olhei para o lugar que ele estava apontando, e vi um homem afeminado parado em um ponto de ônibus. Pensei no quanto seria preconceituoso referir-se a um gay daquela maneira no Brasil! Indignada, perguntei:
-Onde queres que eu fique?
E meu amigo, já impaciente:
-Ali, naquela bicha, junto ao paneleiro!
Olhei, mas não vi panela alguma... mesmo assim, fui até o lugar que ele me indicou, e dez minutos depois, meu amigo estava de volta. Estendeu-me uma caixa de goma de mascar, oferecendo:
-Queres uma pastilha elástica?
Por via das dúvidas, agradeci e recusei. Naquele momento, nosso ônibus chegou. Acho que devido à longa viagem e a tudo o que havia ingerido no restaurante, comecei a sentir-me um pouco enjoada. Meu amigo sugeriu que fôssemos a uma farmácia para que eu tomasse uma pica digestiva.
Agradeci novamente, e disse que já me sentia bem melhor.
Ele comentou:
-Antes tivesses comido a punheta!
Concordei com ele, só para não perder o amigo.
Glossário
punheta: bacalhau cru desfiado
cacetes: paezinhos
estra com histórias: ficar menstruada
banheiro - salva-vidas
Está lá? - alô?
canalhas - grupo de crianças
bica - cafezinho
paragem de autocarro - ponto de ônibus
montra - vitrine
fita-cola - durex
durex - camisinha
bicha - fila
paneleiro - gay
pastilha elástica - goma de mascar
pica - injeção