Trecho do livro "Olhinhos de gato" de Cecília Meireles
(...) O mesmo peso e a mesma sombra estiveram, anteriormente, sobre o coração.
Ela andava entre as folhas secas, e as pedras, e as raízes das plantas, sozinha, falando sozinha, abaixando-se para apanhar uma concha misturada com a terra, ou perguntando coisas a algum caco de vidro. Os espinhos puxavam-lhe o vestido. As pombas fugiam de seus sapatos. Nos quintais sossegados, cachorrinhos latiam. Era doce o ar, e deitavam-se cores atrás das montanhas. Um papagaio de papel balançava-se muito alto, no caminho dos pássaros.
Então seu ouvido percebeu um gemido baixinho.
Parou entre as árvores, para descobri-lo.
Ouviu o zunir de um inseto, o suspiro da tarde nas folhas, o pingo de água no tanque, um pio de pássaro muito longe...
-As coisas mais mínimas. Até o fru-fru do papel de seda do papagaio lá no céu.
pedras. Buracos. Raízes entrelaçadas. Sombras de frondes...
E o gemido continuava.
Coreu para a moita dos "brincos de rainha", afastou os galhos, debruçou-se para dentro, sustida numa folha copm os pés a fugirem do barranco - e na sombra dois olhinhos mal abertos se levantaram para os seus, com o tênue gemido, numa expressão tão compreensível de medo e queixa como se ali estivesse uma outra criança igual a ela: e sofresse.
Tropeçando nas pedras, rasgando-se nos espinhos, subiu a correr, com o coração rápido, metendo-se por entre coisas velhas- regadores, panelas, ancinhos- à procura de qualquer coisa que aumentasse os seus braços, que a fizessem chegar até o fundo daquele - para ela imenso - abismo, e de lá retirar aquela vida que gemia.
E com uma alça de barbante, sozinha, a trouxe do fundo da sombra, e a levou para o quintal acima, pela escada acima, com as pernas já moles do esforço e da emoção, para espanto de todos, que lhe perguntavam: "Mas de onde arranjaste esse bicho tão feio! E não tiveste medo? E que vamos fazer agora deste cachorrinho?"
E o bicho movia-se pelo chão, pretinho encaracolado, e a menina, de cócoras, ria-se e tinha medo, ao mesmo tempo. Maria Maruca resmungava: "É muito engraçadinho, sim, para me sujar a cozinha toda." Dentinho de Arroz não lhe queria tocar: "Eu sei lá de onde veio isso! Essa gente sabe muita coisa... Pode ser alguma 'porcaria'."
mas Boquinha de Doce dizia: "A criança também há de brincar com alguma coisa. Contanto que não se machuque... Deixem o pobre bichinho. Uma coisinha tão pequenina! Que trabalho é que isto dá!" Mas Maria Maruca implicava: "É mais uma coisa para atrapalhar os pés da gente!"
Olhinhos de Gato estava brincando com ele, mas estava também escutando. E Boquinha de Doce perguntou-lhe: "Como é que vai se chamar?" Discutiu-se o nome. A criança queria que fosse "Jasmim". "Ai, um jasmim preto!- ria Maria Maruca - nunca na minha vida vi!" E troçando chamava-o: "Jasmim, Jasminzinho, anda cá, meu cheiroso Jasmim!..."
E acasa encheu-se daquela nova alegria. Patinhas negras pulando os degraus da escada, corpinho negro encolhendo-se por baixo dos móveis... Focinho negro, de olhinhos estufados, diante do qual o gato surpreendido e contrariado fazia 'ffffl...!" como a corda frouxa da guitarra...
Mas um dentinho branco e pontudo pode passar de raspão, como um espinho, e uma gota de sangue despontar, como um pingo de orvalho, Corre-se com o vidro de iodo. "Eu, por mim, punha-lhe açúcar em cima, e depois, uma teia de aranha..."
E, alta noite, ela mesma não sabe que a mão, robusta e morna, pousa-lhe na testa, no pescoço, nos braços. Que se examina o dedo ferido, que se torna a apagar a luz. Que talvez se reze...
O que sabe, porém, no dia seguinte, é que não anda mais nem pela casa nem pelo quintal aquele brinquedo peludo de olhinhos tão redondos e dentinhos tão finos.
Lá vai ela, calada e sozinha, mais com apreensão do que com esperanças. Por baixo dos móveis, já viu; por dentro das barricas e dos cestos, também; e atrás das portas, não está... E não caminha mais para longe. Procura por entre as pedras, afasta de novo a moita de 'brincos-de-rainha'- como naquela tarde... mas não está. Não se ouve mesmo nenhum gemido. Não o encontra e não pergunta. E não pergunta só pelo medo da resposta.
E deixaram-na procurar tanto! E deviam ter visto que estava sofrendo... E seu coração doía como se o tivessem pisado duramente e sem socorro.
maria Maruca ceio implicar: "Não achaste o Jasminzinho? Foi-se embora, o maroto! Fugiu!..."
E ela, então, chorou alto, convulsamente, sob muitos tormentos reunidos e confusos, e as pessoas se desfizeram diante dela, como estátuas de cinza, e a casa ficou vazia, sem mais braços, sem mais rostos, sem mais vozes certas. Sozinha ela existia entre as coisas imóveis, que talvez lhe falassem, se pudessem, e a abraçassem, se não estivessem presas na sua forma. Sozinha ela existia - com as cadeiras, os espelhos, as paredes, as árvores, as nuvens, o sol...
Era assim.