quarta-feira, 14 de janeiro de 2015
Perdão e Esquecimento
Perdão e Esquecimento
Ao ser indagado sobre quantas vezes devemos perdoar aos nossos ofensores, Jesus foi bem claro: “Setenta vezes sete.” Mas até mesmo esta conta é um número finito: 490. E com toda certeza, ele baseou este número em uma representação simbólica daquilo que ele mesmo faria – e qual de nós pode igualar-se a ele? Na oração que deixou para nós, ele continua: “Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos aos nossos ofensores”, ou em outra versão, “Perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores." Mas em nenhum momento, ele disse: “Esqueçais as nossas dívidas assim como nós nos esquecemos dos nossos devedores.” E foi ele mesmo que expulsou os vendilhões do templo (os oportunistas) à gritos e pontapés. Por mais que ele amasse a todos igualmente, Jesus sabia muito bem que existem pessoas e pessoas...
Jesus sabia muito bem que quem perdoa, não esquece. Lá no fundo da alma, no âmago do ser, aquele que foi traído, ferido, enganado ou caluniado, especialmente quem o foi mais de uma vez pelas mesmas pessoas, não pode esquecer-se deste fato. E mesmo que, por razões íntimas, sejam elas feitas de convicções religiosas ou do mais puro sentimento de amor, quando perdoam, as pessoas se lembram; nós nos lembramos. Porque, como circula em uma frase de filosofia Facebookeana, “perdoar não é sofrer de amnésia.”
Mas existe uma grande diferença entre não esquecer e guardar rancor. O rancor, o ódio, a raiva, são sentimentos destrutivos. Quando eu os sinto, eu procuro observá-los, entender suas causas e conversar com eles até que eu os tenha sob meu controle. Acredito que tentar soca-los debaixo de uma falsa capa de perdão e esquecimento poderá torna-los ainda mais fortes e nocivos, prejudicando até mesmo a minha saúde física e mental. E dizer a alguém “Eu te perdoo” sem que isso seja verdadeiro, é mentir. Mentir para si mesmo e para a pessoa em questão.
Tudo o que vivemos faz parte de nosso aprendizado, da nossa experiência, e não deve ser esquecido, porém, entendido, assimilado. Se uma pessoa me fere hoje, e amanhã, e depois de amanhã, qual o sentido em continuar expondo-me a ela deliberadamente, já sabendo de quais atitudes esta pessoa é capaz? Afasto-me dela. Observo-a. Dou-lhe um tempo para que ela evolua em seu próprio ritmo, sem tentar impor-lhe as minhas convicções mas sem submeter-me aos seus desmandos. E não o faço por razões falsamente altruístas, mas porque assim estarei protegendo a mim mesma. Se eu achar que aquela pessoa realmente vale a pena, digo a ela os motivos pelos quais estou me afastando. Caso contrário, não digo nada.
Aprendi que de nada adianta tentar modificar os outros, pois cada um acredita naquilo que está pronto a acreditar, e vive conforme suas próprias crenças e experiências. Tentar impor as minhas ideias e convicções – que podem muito bem estarem erradas - só vai fazer com que eu perca meu tempo. Mas eu também acredito que um dia todo mundo acaba percebendo os próprios erros e agindo a fim de consertá-los. Eu mesma sei que tenho muitos erros a serem consertados, e estou cuidando disso.
Quando pessoas passam por treinamentos de busca e salvamento, elas aprendem, em primeiro lugar, a cuidarem delas mesmas e garantir a própria integridade física. Em um avião, em caso de acidente nós somos ensinados a colocar a máscara de oxigênio em nós mesmos antes de tentar ajudar os outros. A pessoa mais importante do mundo, para mim, sou eu mesma. Ninguém viverá por mim, ninguém aprenderá por mim, e se um dia eu precisar de ajuda, sei que é mais provável que eu a encontre em alguém que esteja calmo e equilibrado.
Perdoar não é esquecer; tem mais a ver com entender, compreender e superar, arriscando-se a ser ferido novamente. Porque muitas vezes, quem pede perdão não o faz sinceramente, mas apenas por questões que envolvem interesses pessoais momentâneos. Aprender a identificar estas pessoas é vital para quem preza sua autoestima.
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
ASAS DE OURO
"Faça-se de outro as asas do pássaro e ele nunca mais voará aos céus." - Tagore
Asas de Ouro
Tuas asas são de ouro,
De ouro são teus desejos,
E no coração, um peso
te mantém sempre no chão.
De brilhantes, os teus olhos,
E os teus pés, são de latão...
Só dão passos pequeninos,
Mantém-se firmes no chão...
Tuas asas são de ouro,
E tua alma encarnada
Entre pesos e tesouros
Perdeu-se num denso nada!
Há um céu azul deserto
Coalhado de nuvens brancas,
Ansiando por teu voo,
Esperando que te livres
Das tuas asas de ouro!
segunda-feira, 12 de janeiro de 2015
Nevegar é Preciso
De Fernando Pessoa:
"A verdadeira experiência consiste em restringir o contato com a realidade e aumentar a análise desse contato. Assim a sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está tudo; basta que o procuremos e o saibamos procurar."
"Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar."
"Somos todos míopes, exceto para dentro. Só o sonho vê com o olhar."
"A natureza é a diferença entre a alma e Deus."
"Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. mais ou menos, pelo sentido que havia de ser o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos."
"O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. a ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estágios: o estado marcado por Sócrates, que disse "Só sei que nada sei" e o estagio marcado por Sanches, quando disse "Nem sei se nada sei." O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo homem superior o dá e atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos homens o tem atingido na curta extensão já tão longa do tempo, que , humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária superfície da terra. Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse "Conhece-te" propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que o da esfinge. Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho."
À Noite, no Jardim
As noites petropolitanas são sempre frescas, mesmo no verão , e apesar dos dias bem quentes que estamos tendo é possível ir lá para fora à noite e desfrutar de uma brisa fresca, quase fria. É o que temos feito sempre que possível.
Ficamos sentados no jardim, enquanto os cães brincam perto de nós. Olhamos as estrelas. Ontem, escutamos um barulho sobre o muro forrado de hera, e quando olhamos, percebemos que estávamos sendo observados: um ouriço caixeiro estava bem acima de nossas cabeças, e quando os cães latiram para ele, começou a mover-se bem lentamente sobre o muro, até desaparecer do outro lado. Ainda bem que ele não estava no gramado, ou teríamos problemas com os cachorros... tirar espinho de ouriço é trabalhoso.
Conversar no escuro é bom... parece que prestamos mais atenção ao que o outro diz sem as distrações do dia. Bem, mas é certo que a noite também tem suas distrações, como os ouriços, por exemplo. E os cães. E as estrelas cadentes. Mas são distrações mais serenas, que ao invés de nos puxarem para fora, encantam os caminhos que vão para dentro...
Hare Krishna
Saí bem cedo para caminhar, antes que o sol esquentasse demais. Acordar cedo é maravilhoso, e aconselho quem não gosta a experimentar durante alguns dias, mas de coração aberto...
Assim que acordo, ao escovar os dentes, olho pela janela do banheiro, e deparo com um pica-pau - daqueles de cabeça e pescoço vermelhos, com penacho e tudo - fazendo a festa no tronco da árvore do vizinho. Lindo de viver! Se eu não estivesse ali naquele momento, não o teria visto!
Desço a rua da minha casa, e vou encontrando com as pessoas que também acordaram cedo para ir trabalhar ou caminhar, como eu. Trocas de "Bom dia" em plena manhã de segunda-feira me deixam mais otimista em relação ao mundo e às pessoas. Uma brisa fresca sopra, mas o céu totalmente azul promete muito calor para mais tarde.
Chego à Barão do Rio Branco. Começo a caminhar mais rápido. Carros e ônibus passam pela estrada, e mais pessoas me cumprimentam. Sinto o movimento da vida, a semana que se inicia, caminhos que se cruzam, portas que se abrem e se fecham. Olho para o céu, as árvores antiquíssimas, e penso no quanto é preciso agradecer todas as manhãs. E agradeço. Faço as minhas orações, tenho a minha conversa com o Deus que vive em mim. Depois, respiro fundo várias vezes, e começo a entoar, mentalmente, um antigo mantra que aprendi quando ainda era adolescente:
"Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare / Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare." Ele significa: "Ó Senhor Todo-Atrativo e fonte de todo o prazer, ó energia do Senhor, por favor, ocupai-me no vosso serviço".
OCUPAI-ME NO VOSSO SERVIÇO.
E enquanto o recito muitas e muitas vezes, mentalizo uma luz azul entrando pelas minhas narinas quando inspiro, e uma luz cinzenta saindo quando expiro. Vou me limpando por dentro.
Faço isso há muito tempo, toda vez que saio para caminhar. Para mim, esse mantra significa soltar as amarras da vida que supomos ter entre as mãos e deixá-la fazer o serviço, conduzir-nos no caminho, mostrar-nos por onde seguir. Porque nós não temos controle de nada, absolutamente nada. Podemos sonhar, correr atrás daquilo que queremos, mas só virá até nós aquilo que for nosso por direito divino. A vida sempre sabe o que é melhor, o que precisamos fazer para aprender o que viemos aprender. Acredito que uma grande parte das desgraças e frustrações que nos caem são devidas à nossa mania de querer controlar tudo, apressar tudo.
Vejo pessoas lutando para obter coisas e mais coisas, e mesmo após obtê-las, não conseguem se sentir felizes, não tem paz, e o desejo de obter mais e mais coisas jamais cessa; acho que é justamente porque elas querem mandar na vida, controlar tudo, tomar a frente de Deus.
Caminhar me traz serenidade. Sozinha na estrada, eu me lembro de compreender que qualquer estrada que tomemos sempre nos conduzirá a algum destino. Mas quando estivermos em uma encruzilhada, a decisão sobre qual caminho tomar não deve vir só da gente. É hora de silenciar para escutar.
sexta-feira, 9 de janeiro de 2015
A MUSA
Penteava, tranquila,
Seus cabelos de Medusa,
A musa.
Mirava-se num rio
De águas profundas,
Sua imagem desfazendo-se em círculos concêntricos,
Descrita nas palavras
Da gente confusa
Que não entendia a sua língua.
Deitava lágrimas nas águas
E risos nas margens.
Mergulhava fundo,
E embora não soubesse nadar
Jamais se afogava!
Enquanto isso,
A barca passava...
Poetas deitavam suas penas nas águas claras
Da musa impassível,
Formando conjuntos risíveis de luz e de trevas,
Mentes obtusas
Que se alimentavam
Das linhas da musa.
Julgavam com palavras excusas,
E profetizavam
Sobre o que somente ela compreendia.
A noite engolia o dia,
Apagando as inspirações...
Entre Orquídeas
Uma caminhada. O dia estava quente. Após andar durante quase trinta minutos sob o sol forte, preciso refrescar-me. Passo em frente ao Orquidário Binot, e entro, percorrendo o caminho sombreado por feixes de bambu e árvores frondosas, escutando o barulhinho da água que entra no laguinho de trutas através de um pequeno riacho.
O resto, é só encantamento.
Caminhar entre as flores... deixar-me ficar ali, olhando para elas em reverência, sentindo suas energias de cor e veludo... qualquer alma há de sentir-se em paz, com a sensação benfazeja de que tudo está certo no mundo, e que todas as coisas caminham para um bom final. Junto às flores, não pode haver tristeza, saudades, ou qualquer tipo de eco maldoso vindo do mundo lá fora. Aqui só chega a paz. Estou protegida, e nada de mal pode acontecer-me.
Não quero ir embora. O vendedor chega, oferecendo-me ajuda, e digo que só estou olhando. "Me refazendo," digo a ele, e ele sorri, e tenho certeza de que me entendeu. retira-se discreta e reverentemente, deixando-me à sós com a beleza. Mas o mundo lá fora me chama... há as urgências: aulas a serem preparadas, alunos chegando, jardineiro aguardando o lanche da tarde.
Dirijo-me à saída carregando uma caixa com a orquídea e a bromélia que comprei. Sinto-me leve, refeita, energizada e totalmente feliz. Levo para casa um pedacinho daquela paz, que arrumo sobre o console da lareira. É reconfortante saber que aquele lugar estará ali amanhã, e depois, e depois...
quinta-feira, 8 de janeiro de 2015
Uma casa da Minha Infância
A gente tocava a campainha da casa na antiga Rua João Pessoa e a porta era aberta ao ter a maçaneta puxada por uma cordinha, onde, no final de uma escadaria de madeira, Tia Rosa nos esperava. Após as saudações, os adultos ficavam conversando na sala de pé-direito altíssimo e janelas enormes, enquanto as crianças iam brincar lá fora. Do quintal via-se os prédios altos e totalmente diferentes da casa antiga, perdida no meio daquela arquitetura moderna. Havia uma varanda comprida, com várias portas que deveriam ter sido quartos dos empregados da casa nos velhos tempos, mas um daqueles quartos era ocupado por gatos de todas as cores, tamanhos e espécies. Havia gatos pela casa toda.
Tia Rosa e Tia Nanina diziam que eles iam chegando e ficando. Eu adorava brincar com eles, embora muitos fossem ariscos e fugissem quando eu me aproximava.
Nos fundos da casa havia uma edícula onde as duas irmãs nos chamavam na hora do café. No primeiro andar, uma grande cozinha com chão de cimento queimado, e subindo uma escadinha lateral, chegávamos a um quarto onde havia uma cadeira de balanço, na qual eu adorava sentar-me, e um pequeno banheiro. Se subíssemos pelo morro nos fundos da casa, chegaríamos a uma outra casa, abandonada, cercada por pessegueiros e muito mato. Flores selvagens cresciam por lá, e a vista era linda! Via-se a torre da catedral, os topos dos prédios, as montanhas ao longe... só havia silêncio e pássaros. Nós, crianças, achávamos que a casa era assombrada. Meu sonho era morar nela!
Na hora do café - que só era oferecido quando nós, as visitas, nos levantávamos para ir embora - Tia Rosa e Tia Nanina esticavam uma toalha sobre a mesa de madeira, onde dispunham as xícaras remanescentes de vários aparelhos, com desenhos diferentes. Minha preferida era uma de bolinhas vermelhas. Às vezes, elas faziam bolo. Era uma delícia ficar ali, vendo-as bater a massa à mão, picar maçãs, acender o forno... eu adorava visitar a Tia Rosa!
E quando ela nos visitava, chegava trazendo sempre um saco de plástico trançado feito esteira, cheio de maçãs vermelhas e perfumadas. Toda vez que eu sinto o cheiro de maçãs, eu me lembro dela. Ela enxergava mal, e morávamos em uma casa com escadas de acesso. À noite, quando ela ia embora, a iluminação no topo das escadas não era suficiente para que ela enxergasse, e meu pai fazia tochas de jornal para iluminar melhor o caminho, enquanto a ajudava a descer as escadas até o táxi que a estava esperando para levá-la de volta para sua casa na Rua João Pessoa.
Lembranças da minha infância, que ficarão para sempre...
Viktor Frankl
Viktor Frankl |
"Existem sobre a terra duas raças humanas e realmente apenas essas duas: a "raça" das pessoas direitas e a das pessoas torpes."
"Quem tem um 'porquê' enfrenta qualquer 'como'."
"Quando a circunstância é boa, devemos desfrutá-la; quando não é favorável devemos transformá-la e quando não pode ser transformada, devemos transformar a nós mesmos."
"A vontade de humor -- a tentativa de enxergar as coisas numa perspectiva engraçada -- constitui um truque útil para a arte de viver."
Um curto trecho do prefácio de seu livro "Man's search for meaning:"
"O escritor e psiquiatra Viktor Frankl costuma perguntar a seus pacientes quando
estão sofrendo muitos tormentos grandes e pequenos "Por que não opta pelo
suicídio?" É a partir das respostas a esta pergunta que ele encontra,
freqüentemente, as linhas centrais da psicoterapia a ser usada. Num caso, a pessoa
se agarra ao amor pelos filhos; em outro, há um talento para ser usado, e, num
terceiro caso, velhas recordações que vale a pena preservar. Costurar estes débeis
filamentos de uma vida semi-destruída e construir com eles, um padrão firme, com
um significado e uma responsabilidade - este é o objetivo e o desafio da logoterapia,
versão da moderna análise existencial elaborada pelo próprio Dr. Frankl.
..........................
No campo de concentração todas as circunstâncias conspiram para fazer o
prisioneiro perder seu controle. Todos os objetivos comuns da vida estão desfeitos.
A única coisa que sobrou é "a última liberdade humana" - a capacidade de escolher
a atitude pessoal que se assume diante de determinado conjunto de circunstâncias".
Esta liberdade última, reconhecida pelos antigos estoicos e pelos modernos
existencialistas, assume um vívido significado na história de Frankl. Os prisioneiros
eram apenas cidadãos comuns; mas alguns, pelo menos, comprovaram a
capacidade humana de erguer-se acima do seu destino externo ao optarem por
serem "dignos do seu sofrimento".
Um trecho do livro:
O destino - um presente
Da maneira com que uma pessoa assume o seu destino inevitável, assumindo com
esse destino todo o sofrimento que se lhe impõe, nisso se revela, mesmo nas mais
difíceis situações, mesmo no último minuto de sua vida, uma abundância de possibilidades de dar sentido à existência. Depende se a pessoa permanece
corajosa e valorosa, digna e desinteressada, ou se na luta levada ao extremo pela
auto-preservação ela esquece sua humanidade e acaba tornando-se por completo
aquele animal gregário, conforme nos sugeriu a psicologia do prisioneiro do campo
de concentração. Dependendo da atitude que tomar, a pessoa realiza ou não os
valores que lhe são oferecidos pela situação sofrida e pelo seu pesado destino. Ela
então será "digna do tormento", ou não.
Ninguém pense que essas reflexões estejam distantes da realidade da vida e do
mundo. Sem dúvida, poucas e raras são as pessoas capazes e à altura dessa
elevada proposta. Pois poucos foram os que no campo de concentração mantiveram
a sua plena liberdade interior e puderam alçar-se à realização daqueles valores
possibilitada pelo sofrimento. E mesmo que tivesse sido um único apenas - ele
bastaria como testemunho para o fato de que a pessoa interiormente pode ser mais
forte que seu destino exterior, e isto não somente no campo de concentração.
Sempre e em toda parte a pessoa está colocada diante da decisão de transformar a
sua situação de mero sofrimento numa produção interior de valores. Tomemos o
caso dos doentes, particularmente os incuráveis. Li certa vez a carta de um paciente
relativamente jovem comunicando ao seu amigo que acabara de ficar sabendo que
sua vida não duraria muito mais e que mesmo uma operação não o salvaria. Mas
escrevia ainda nesta carta que justamente agora se lembrava de um filme no qual
um homem encarava a sua morte com disposição, dignidade e coragem. Naquela
ocasião, quando assistiu o filme, este nosso paciente pensara que só pode ser "um
presente do céu" caminhar em direção à morte com essa atitude, de cabeça erguida,
e agora - escrevia ele – seu destino lhe dera essa chance.
Anos atrás vimos outro filme, "Ressurreição", baseado num romance de Tolstoi.
Quem então não pensou a mesma coisa: Que destinos grandiosos, quão grandes
personalidades! Nós de certo não teremos um destino tão glorioso e por isso jamais
poderemos alcançar semelhante grandeza humana. . . Terminada a sessão de
cinema, íamos tomar um café, comer um sanduíche e acabávamos com essas
estranhas idéias metafísicas que por um momento haviam cruzado nosso
pensamento. Mas quando a gente mesmo se via colocado perante um destino
grandioso, quando a gente mesmo se defrontava com a decisão de fazer frente ao
destino com grandeza interior própria, já tínhamos esquecido aqueles propósitos
pouco sérios e acabávamos falhando. . .
Para este ou aquele, entretanto, talvez tenha chegado o dia em que estava
novamente sentado no cinema assistindo ao mesmo filme, ou a um filme
semelhante, enquanto que interiormente o seu olhar imaginativo assistia
simultaneamente ao filme de lembrança, de lembrança daquelas que jamais
realizaram em sua vida tudo isso, e mais ainda do que o pode mostrar uma
produção cinematográfica de cunho sentimental. Quem sabe, então nos ocorre esse
ou aquele detalhe dessa ou daquela história da grandeza interior de determinada
pessoa - como por exemplo a história de uma mulher jovem morrendo no campo de
concentração, da qual fui testemunha. A história é singela, não há muito o que
contar, e mesmo assim ela soará como que inventada, de tão poética que ela se me
afigura.
Essa jovem mulher sabia que teria que morrer nos próximos dias. Quando falei com
ela, ainda assim estava bem disposta.
"Sou grata a meu destino por ser assim tão duro comigo", foi o que ela me disse
textualmente, "pois em minha vida burguesa anterior eu estive mal-acomodada
demais e minhas ambições espirituais não eram lá muito sérias." Em seus últimos dias ela estava completamente ensimesmada. "Essa árvore ali é única amiga em
minhas solidões", disse-me ela apontando pela janela do barracão. Lá fora um
castanheiro estava em plena florescência e do catre da enferma podia-se enxergar,
pela pequena janela do barracão da enfermaria, um único ramo verdejante com
duas flores. "Com essa árvore eu converso muitas vezes", disse ela. Fico meio
desconcertado, sem saber como interpretar as suas palavras: Estaria ela sofrendo
de alucinações e delírios? Por isso lhe pergunto se a árvore também lhe responde -
sim? - e que lhe estaria dizendo. Respondeu-me: "Ela me disse, estou aqui, eu -
estou - aqui - eu sou a vida, a vida eterna..."
terça-feira, 6 de janeiro de 2015
Segredos
Te disse que eu não tinha tempo,
Mas cismaste em confessar
Aos meus ouvidos apressados
Os teus segredos guardados!
Metade ficou derramada
Nas águas turvas do lago,
Naquelas águas cansadas
Onde já não há mais barcos...
Uma parte foi levada
Pelo vento, em céu nublado,
Caiu em gotas de chuva
Teu coração salpicado...
A última parte, eu ouvi,
Mas confesso, não guardei...
Eu disse que eu não tinha tempo,
Por isso, eu não te escutei...
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