A Casa Onde Morei
Novamente, chego à mesma velha e conhecida rua. Anoitece. A casa, com seu telhado em "V" invertido no alto da colina, é apenas uma sombra escura contra o céu.
O portão range quando o abro. Conheço este ruído. Vagarosamente, começo a subir os degraus. Conheço também cada pedra, sei onde cada degrau é mais alto ou mais baixo. Posso subí-los mesmo durante a mais negra escuridão. Quando chego em frente à casa, deparo com as duas janelas da frente escancaradas e negras, como se fossem dois olhos sem órbitas a me fitarem. Já está quase totalmente escuro. O silêncio é total, e não há luzes na casa.
Entro. Deparo com uma sala sem móveis, fantasmagórica. Onde está minha mãe? E meu pai? Onde estão meus irmãos? Testo o interruptor, apenas para confirmar: não há luz. Meus passos ecoam no chão de assoalho.
A velha e pesada mesa de madeira ainda está na cozinha. Sobre ela, uma vela acesa. Súbito, a porta da cozinha se abre, e entra meu pai. Mas ele apenas me fita, sem nada dizer. Está muito sério e parece zangado. pergunto-lhe o que quer, ele não responde. Percebo que só posso vê-lo da cintura para cima, a parte de baixo do seu corpo se desvanece aos poucos. Assusto-me, afinal de contas, lembro-me de que ele está morto há muitos anos. Mas antes que eu possa ter qualquer reação, ele vira-me as costas e sai. A chama da vela oscila. Vejo a porta entreaberta do quarto que foi de meu avô. Eu a empurro, e ela chora. Lá dentro, de pé no canto da parede, meu avô é apenas uma sombra indistinta. Não posso ver seus olhos. Logo, ele some.
A escuridão agora é total. Saio pela porta dos fundos. Vejo as folhas das bananeiras brilhando, mas não há luar. De repente, vejo meus gatos, que me rodeiam, miando desesperados: Loretta, a gatinha que perdeu um olho; Frieda, a que gostava de comer as esponjas de lavar louça. Dirceu, o gato preto que caçava borboletas. Gugu, o rajado, meu preferido. Barbarella. Pedro, Amarelo, Mimi. Há também outros gatos que já foram meus. Tenho que alimentá-los. mas lembro-me que estão mortos. Mortos não comem. Choro de saudades deles.
Aparecem meus cachorros: Fox, Rex, Bolinha, Susi, Fábrica (ela sempre paria muitos filhotes), Jolie, Fifi, Dédi (Dead, em Inglês, pois ele era muito feio), Bob, Mim e muitos outros. Sinto muito ter que ir embora e deixá-los sozinhos naquela casa vazia e escura. Mas não posso cuidar deles, e eles não podem vir comigo.
Preciso ir embora. A melancolia que me invade é indescritível. Chamo por nomes. Apenas o eco da minha própria voz responde. Grito o nome da nossa vizinha. Olho por cima do muro, mas a casa dela está vazia e escura, como a minha. Apenas D. Delfina, a sogra, que era cega e muito idosa, e andava segurando-se nas paredes da casa a fim de se guiar, passa por mim. Mas ela some, antes de fazer a curva em volta da casa. Alguém aparece à janela. Reconheço Tamico, o irmão da vizinha, que morreu de tuberculose quando eu tinha cinco anos. Nunca mais eu me lembrara dele desde então!
Como os outros, ele some.
Passam de mãos dadas D. Lourdes e seu marido, Moacir. Caminham como num transe e passam por mim sem me cumprimentarem, desaparecendo contra a parede da casa.
Meu tempo está acabando. Cruzo a lateral escura da casa, correndo para o quintal da frente. Começo a descer os degraus lentamente. Olho para cima mais uma vez, e todos os animais me olham, sentados nos degraus. ter de deixá-los presos ali parte meu coração. Grito: "Eu volto para cuidar de vocês, prometo!"
Desperto.