Conversas com a minha casa
Sento-me na velha poltrona gasta de couro marrom. Já é quase noite. Sempre adorei o crepúsculo, desde que era bem pequena.
O Silêncio é tão grande, que consigo ouvir o relógio da cozinha. É nessas horas que sinto mais paz. Eu e o Silêncio somos grandes amigos, e não consigo viver sem ele durante muito tempo. Mesmo durante as festas, às vezes eu vou ao banheiro sem precisar, apenas para contatar meu grande amigo, o Silêncio.
Por isso, convidei-o a morar comigo. Ele às vezes precisa se ausentar, quando recebo alguns convidados, ou quando coloco uma música um pouco mais alta para ficar 'no clima da faxina'. Mas ele sabe que eu preciso dele e que por isso ele é sempre bem-vindo, então quando todos se vão e a noite chega, ele se senta comigo na sala de estar. Tomamos uma xícara de chá, e juntos, convidamos a Casa para uma prosa.
Ela desperta, e nos acolhe. Caminhamos de mãos dadas pelos corredores, eu e o Silêncio, e sempre acabo encontrando pedaços de nós nos cantos dos cômodos: fotos, uma camiseta jogada displicentemente nas costas da poltrona do quarto, as escovas de dente, chinelos, vidros de perfume... e a casa me diz: "Logo anoitece, e ele vai voltar para nós." O silêncio aperta minha mão, concordando.
Volto a sentar-me, desta vez, na varanda.
Ouço o mesmo grilinho cantando, o mesmo desde que nos mudamos para cá, há cinco anos. Cecília o chamaria de "Estrelinha de Lata". A Casa me convida a andar no gramado, olhar as estrelas, procurar pirilampos.
Lá do alto do jardim, olho para baixo e vejo a Casa, me olhando aconchegantemente, iluminada apenas pela luz fraca dos abajures. Suas janelas são olhos que me fitam, e a porta, uma boca que me sorri. O silêncio foge temporariamente, quando um cão uiva no quintal do vizinho. Aleph e Latifa respondem.
Aproveito para ficar novamente sozinha com a casa. Ela me diz que ainda existem alguns fantasmas habitando os cômodos, mas que eles não podem me fazer mal. Eu às vezes estou trabalhando na cozinha, e sinto como se houvesse alguém atrás de mim, observando o que faço. Outras vezes, quando ponho uma música um pouco mais alta, fico intrigada porque o volume diminui pouco a pouco, sem que eu perceba, e quando dou por mim, quase não posso ouvir a música. A casa me diz que os fantasmas não gostam de qualquer tipo de música, preferem as clássicas.
Às vezes, a TV liga sozinha. Já aconteceu várias vezes, e não sei explicar o motivo. A Casa sorri. Diz que é tudo uma brincadeira para me assustar.
Ouço os passos do Silêncio que se aproxima novamente, sentando-se no sofá. Deixo que ele fique à vontade, pois daqui a pouco ele chega, e entre os sons das conversas, os relatos do que aconteceu durante o dia e o barulho da TV, o Silêncio não será ouvido.
Mas quase sempre, lá pelas onze da noite, após todas as conversas, comes e bebes e ruídos da TV, nós nos sentamos os quatro: Ele, eu, a Casa e o Silêncio.
Texto publicado em 22/09/2009 no Recanto das Letras